A ação salvífica de Cristo continuada na liturgia

Dr. Rafael Vitola Brodbeck
 
“Na celebração litúrgica, a Igreja é serva à imagem do seu Senhor, o único ‘liturgo’, participando de seu sacerdócio (culto) profético (anúncio) e régio (serviço de caridade).
 
Com razão, portanto, a liturgia é tida como o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo, no qual, mediante sinais sensíveis, é significada e, de modo peculiar a cada sinal, realizada a santificação do homem, e é exercido o culto público integral pelo Corpo Místico de Cristo, cabeça e membros. Disto se segue que toda a celebração litúrgica, como obra de Cristo sacerdote e de seu corpo que é a Igreja, é ação sagrada por excelência, cuja eficácia, no mesmo titulo e grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja.” (Cat., 1070)
 
Sabemos que Nosso Senhor nos salvou por sua morte vicária na Cruz. Lá saldou nossa dívida com o Pai, pagando o preço de nosso pecado. Na Cruz, ofereceu seu sacrifício, de uma vez por todas, constituindo-se, ao mesmo tempo, vítima e sacerdote. Ao contrário dos antigos cordeiros da Lei Mosaica, que eram oferecidos por um sacerdote, Jesus não foi morto por outros, mas se entregou livremente. Ele é não só o Cordeiro, como o Sacerdote, o Sumo Sacerdote.
 
Essa sua morte é tornada nova e realmente presente em cada Missa. A Missa é o mesmo sacrifício da Cruz. Altar e Cruz possuem a mesma identidade substancial. É de fé essa sentença.
 
Entretanto, não apenas há uma relação entre a Missa e a Cruz. Toda a liturgia, desde a celebração dos sacramentos, passando pelos sacramentais, até a recitação do breviário, é ação do sacerdócio de Cristo. Toda a liturgia, pois, deriva da Cruz.
 
Santo Tomás mesmo nos diz: “Todo o rito do culto cristão é derivado do sacerdócio de Cristo.” (S. Th., III, q. 63, a. 3) O Catecismo da Igreja Católica desenvolve essa sentença do Angélico: “Pela liturgia, Cristo, nosso redentor e sumo sacerdote, continua em sua Igreja, com ela e por ela, a obra de nossa redenção.”  (Cat., 1069) Também a grande Encíclica de Pio XII sobre a liturgia é magistral em sua definição: O “sacerdócio de Jesus Cristo está sempre em ato na sucessão dos tempos, não sendo a liturgia outra coisa que o exercício desse sacerdócio.” (Mediator Dei, 19)
 
Nesse sentido, temos que a ação mais sagrada da Igreja é a liturgia, culminando na Missa, mas não esgotando nela. A liturgia decorre, toda ela, do sacerdócio de Jesus Cristo. Sua ação salvífica na Cruz, ainda que na Missa seja tornada substancialmente real, é continuada, de modo misterioso, em cada ato do culto cristão, seja em um Batismo, na absolvição dos penitentes, na dedicação de uma igreja, em uma procissão de Corpus Christi, no canto solene das Vésperas, na bênção de uma residência.  A própria eficácia de toda ação litúrgica é proveniente da graça conquistada na Cruz. Não só da Cruz, aliás, brota a liturgia. Santo Tomás, com sua habitual clareza e concisão, explana que os sacramentos e todo culto derivam “sua eficácia do próprio Verbo Encarnado.” (S. Th., III, q. 60) É toda a vida de Cristo sua ação salvífica, desde a Encarnação até a Ascensão aos céus, e, vivo que está, por isso mesmo é continuada nos céus. E já que, na liturgia, o céu e a terra se unem e a mesma Igreja é una, ainda que constituída de parcelas triufante, padecente e militante, é nessa liturgia que, do céu, Cristo continua sua obra de salvação, completada, claro, no Mistério Pascal e, sobretudo, na Cruz, porém feita no decorrer de toda a sua vida, a partir da Encarnação.
 
Não por outra razão, a desobediência às normas litúrgicas, por menor que seja, constitui um atentado de certa gravidade. As rubricas, embora emanadas da autoridade meramente humana da Igreja, encontram sua razão mais profunda na história da salvação, na entrega sacrifical de Cristo na Cruz. Defender a Missa “do Missal”, o uso dos paramentos corretos, a escolha de tal ou qual formulário, o impedimento de certos gestos e ritos, não é rubricismo. Trata-se da expressão de algo central em nossa fé: Jesus Cristo, Nosso Rei e Redentor, continua, no céu, como Sumo Sacerdote, intercedendo por sua Igreja, e de lá age na liturgia dessa mesma Igreja. “O Divino Redentor quis, ainda, que a vida sacerdotal por ele iniciada em seu corpo mortal com as suas preces e o seu sacrifício, não cessasse no correr dos séculos no seu corpo místico, que é a Igreja.” (Mediator Dei, 2)
 
Quando um sacerdote escolhe, por sua própria vontade, inserir textos não previstos na Missa, ou, a seu bel prazer, altera as fórmulas, deixa de usar a casula, modifica a liturgia, não respeita a ars celebrandi, ou, por exemplo, não insere a sua celebração na ancestral tradição litúrgica do rito romano, ele está, mais do que desrespeitando uma norma positiva da Igreja – o que já seria grave –, maculando a ação salvífica de Cristo. “Fabricar” a própria liturgia, e ter, em cada paróquia, como que um rito distinto daquele aprovado pela competente autoridade – Roma –, além de usurpar um papel que não é seu, expressar uma forma mesquinha de narcisismo clerical, e ignorar dois mil anos de símbolos, sinais e orgânico desenvolvimento da liturgia católica, faz do padre ou do Bispo um conspurcador da obra de Nosso Senhor no Calvário.
 
Encarar a liturgia como um ato do Sumo e Eterno Sacerdócio de Cristo, manifestado a partir da Encarnação, porém com mais vigor na Cruz do Calvário, ter a liturgia como continuação dessa ação salvífica e sacrifical do Senhor, é um salutar remédio contra as “invencionisses” e o subjetivismo reinantes nesse terreno. Quando o padre percebe realmente que seu sacerdócio deriva do Sumo e Eterno Sacerdócio de Cristo, e que, quando celebra a liturgia, não faz mais do que emprestar seu corpo, mente, voz, intenção, a Jesus, para que, por ele, continue a obra de salvação, e para que, por ele, faça a liturgia derivar da Paixão e Morte, aí, sim, cessam os abusos, cessam as interferências, cessam os ruídos, cessam as “criatividades”. Quando, por outro lado, os fiéis entendem a grandiosidade dessa doutrina, acabam os cartazes nas procissões de entrada, acabam os apelos por Missas-show, acabam as “idéias” das “equipes de liturgia”, acabam os sentimentalismos, os minimalismos e as introduções espúrias de símbolos absolutamente estranhos à nossa tradição de culto.
 
É imperioso, portanto, “resgatar o direito divino na liturgia”, para usar as palavras que o conhecido consultor da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, na Santa Sé, autor de vários livros sobre o tema litúrgico, e um dos propugnadores da “reforma da reforma”, Mons. Nicola Bux, usou em uma correspondência que me dirigiu em outubro de 2010. Continua o padre Bux comparando a manipulação, falsificação e abuso na liturgia, pela inobservância das normas e rubricas (não usar casula, por exemplo, ou mudar um texto previsto para a Missa, ou cantar músicas incompatíveis com o mistério celebrado, ou agitar folhetos durante o Hino de Louvor, ou dar um ar um tanto antropocêntrico à celebração), com a adoração ao bezerro de ouro! Mutilar as rubricas ou “inventar moda” na Missa é idolatria!
 
Palavras fortes, mas que manifestam sua mais sublime realidade quando temos em conta que, além das leis humanas, a liturgia brota do Sangue na Cruz derramado, e é dela (e d’Ele) que vive a Igreja!

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