A Eucaristia na Vida do Sacerdote

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DOM FERNANDO GUIMARÃES

por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica

Bispo Diocesano de Garanhuns 

Carta Pastoral aos Padres e Seminaristas

na Quinta-Feira Santa de 2009  

A EUCARISTIA NA VIDA DO SACERDOTE

Prezados Filhos e Irmãos queridos no Sacerdócio de Cristo, 

            “Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim’. Do mesmo modo, após a ceia, também tomou o cálice, dizendo: ‘Este cálice é a nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim’. Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha. Eis porque todo aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor” (1 Cor 11, 23-27). 

            Sem querer descer aos detalhes de uma exegese deste texto bíblico, podemos no entanto realçar como, desde a mais antiga narrativa da instituição da Eucaristia, aparecem unidos, em íntima correlação, alguns elementos que constituem um dos pilares da Igreja e da vida cristã. É sobre eles que quero refletir com vocês, queridos Padres e Seminaristas da Diocese de Garanhuns, neste dia solene em que comemoramos, com toda a Igreja Católica, a instituição da Eucaristia e do nosso Sacerdócio: 

– inicialmente, a Eucaristia, instituída por Cristo para sua Igreja – pão que é seu corpo, cálice que é seu sangue, o sangue da nova Aliança – e que é sinal e atualização, no tempo, da sua morte redentora, como também anúncio profético da plenitude do Reino, na vinda definitiva do Senhor; 

– em seguida, o mandato que ele nos deixou de renovar este gesto e este sinal, e que faz os apóstolos e seus sucessores capazes de agir in persona Christi Capitis et Pastoris, para reunir a comunidade de fé e para oferecer, com ela e por ela, o mesmo sacrifício do Cristo, confeccionando a Eucaristia;[1] 

– enfim, a santidade, obra maravilhosa da graça com a colaboração efetiva do homem, à qual são chamados todos os discípulos de Cristo e que constitui uma exigência intrínseca para nos aproximar de ambos os Sacramentos. 

            Desejo tratar estes temas em três momentos distintos: a) inicialmente, desejo traçar um breve panorama do sentido teológico do Sacerdócio católico e da relação necessária que ele tem com a Eucaristia; b) em um segundo momento, desejo indicar alguns pontos concretos que podem ajudar a traduzir o pensamento teológico na vida sacerdotal de todos os dias; c) e, finalmente, como uma conclusão, procurarei apresentar uma rápida reflexão sobre a sacralidade da liturgia e do nosso Sacerdócio, indicações importantes, em um mundo secularizado, para a renovação da nossa espiritualidade sacerdotal.

1. SACERDÓCIO E EUCARISTIA:

MISTÉRIO DA PRESENÇA REAL DE CRISTO 

            O Catecismo da Igreja Católica (CIC, nn. 1536-1600) nos apresenta um excelente resumo da doutrina e da mais pura tradição da Igreja a propósito do Sacerdócio ministerial. Permitam-me recordá-lo: 

            “A Ordem é o sacramento graças ao qual a missão confiada por Cristo a seus Apóstolos continua sendo exercida na Igreja até o fim dos tempos; é portanto o sacramento do ministério apostólico. Comporta três graus: o episcopado, o presbiterado e o diaconado”.[2] 

            Este sacramento é destinado ao serviço da Igreja e tem sua identidade própria e característica: “No serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo que está presente à sua Igreja enquanto Cabeça de se Corpo, Pastor de seu rebanho, Sumo Sacerdote do sacrifício redentor, Mestre da Verdade. A Igreja o expressa dizendo que o sacerdote, em virtude do sacramento da Ordem, age ‘in persona Christi Capitis” (na pessoa de Cristo Cabeça)” [3] E o Catecismo prossegue, citando o Concílio Ecumênico Vaticano II: “Pelo ministério ordenado, especialmente dos Bispos e dos presbíteros, a presença de Cristo como chefe da Igreja se torna visível no meio da comunidade dos fiéis (cf. LG 21). Segundo a bela expressão de Sto. Inácio de Antioquia, o Bispo é ‘typos tou Patros’, como que a imagem viva de Deus Pai”. [4] 

            Este conteúdo essencial do sacramento da Ordem nos faz refletir sobre a relação que se estabelece entre o Sacerdote e Cristo. Com efeito, Cristo é o único Sacerdote da nova Aliança, não existindo mais uma multiplicidade de sacerdotes como no Antigo Testamento ou nas diversas expressões religiosas da antiguidade. Também porque, na nova Aliança, não existem mais sacrifícios numerosos e repetidos, mas um único sacrifício, como afirma a Carta aos Hebreus: “Cristo, porém, veio como sumo sacerdote dos bens vindouros. Ele atravessou uma tenda maior e mais perfeita, que não é obra de mãos humanas, isto é, que não pertence a esta criação. Entrou uma vez por todas no Santuário, não com o sangue de bodes e de novilhos, mas com o próprio sangue, obtendo redenção eterna. De fato, se o sangue de bodes e de novilhos, e se a cinza da novilha, espalhada sobre os seres ritualmente impuros, os santifica purificando seus corpos, quanto mais o sangue de Cristo que, pelo Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem manche, há de purificar a nossa consciência das obras mortas para que prestemos culto ao Deus vivo” (Hb 9, 11-14). 

            Eis que reaparece o laço essencial e intrínseco entre o Sacerdócio ministerial e a Eucaristia, que reproduz, por assim dizer, o mesmo liame existente entre Cristo e o Sacramento de seu Corpo e de seu Sangue. É o que nos recorda o Catecismo da Igreja Católica, quando afirma: “O Sacrifício redentor de Cristo é único, realizado uma vez por todas. Não obstante, tornou-se presente no sacrifício eucarístico da Igreja. O mesmo acontece com o único sacerdócio de Cristo tornou-se presente pelo sacerdócio ministerial, sem diminuir em nada a unicidade do sacerdócio de Cristo: ‘Por isso, somente Cristo é o  verdadeiro sacerdote; os outros são seus ministros'”. [5] 

            O Sacerdócio nasceu juntamente com a instituição da Eucaristia e ligado a ela. Não é por acaso que as palavras “fazei isto para em memória de mim”, são pronunciadas por Jesus imediatamente após as palavras da consagração eucarística. [6] 

            Através da ordenação sacerdotal, o Padre é ligado à Eucaristia de uma maneira toda especial e excepcional. Podemos dizer que os Sacerdotes existem pela e para a Eucaristia: de certo modo, nós somos responsáveis pela Eucaristia. É interessante relembrar aqui como Santo Tomás de Aquino, nas suas reflexões sobre o sacramento da Ordem, considera-o sempre em uma perspectiva eucarística: é o poder espiritual que diz respeito à Eucaristia e seu caráter sacramental consiste exatamente no poder sobre o corpo de Cristo. [7] 

            Uma segunda consequência nos vem desta reflexão, a propósito da relação entre Padres e fiéis. Trata-se da questão sempre atual da relação entre o Sacerdócio ministerial e aquele que o Concílio Vaticano II chama de “sacerdócio comum dos fiéis”. 

            O Catecismo da Igreja Católica explica-o assim: “Toda a comunidade dos fiéis é, como tal, sacerdotal. Os fiéis exercem seu sacerdócio batismal através de sua participação, cada qual segundo sua própria vocação, na missão de Cristo, Sacerdote, Profeta e Rei. É pelos sacramentos do Batismo e da Confirmação que os fiéis são ‘consagrados para ser … um sacerdócio santo'”. [8] Nesta definição, encontramos os elementos para estabelecer a relação Padre – Fiel: “Enquanto o sacerdócio comum dos fiéis se realiza no desenvolvimento da graça batismal, vida de fé, de esperança e de caridade, vida segundo o Espírito, o sacerdócio ministerial está a serviço do sacerdócio comum, refere-se ao desenvolvimento da graça batismal de todos os cristãos. É um dos meios pelos quais Cristo não cessa de construir e de conduzir sua Igreja. Por isso, é transmitido por um sacramento próprio, o sacramento da Ordem”. [9] 

            Temos, portanto, uma conjunção harmoniosa: como batizados, somos todos chamados à santidade, [10] a viver segundo o Espírito, a nos deixar transformar pela obra santificadora do amor. Não nos esqueçamos que as pessoas ordenadas são, antes de tudo, cristãos batizados que recebem, em seguida, uma ordem sacramental e uma configuração especial, que os põe a serviço da santificação mesma da comunidade dos batizados da qual eles próprios fazem parte: “Quanto a nós, a quem o Senhor, por sua benevolência e não por mérito nosso, estabeleceu neste cargo de que teremos difíceis contas a dar, devemos distinguir bem duas coisas: a primeira, somos cristãos, a segunda, somos bispos. Somos cristãos para nosso proveito; e somos bispos para vós. Como cristãos, atendemos ao proveito nosso; como bispos, somente ao vosso”. [11] 

            A graça sacramental específica da Ordem configura ontologicamente a pessoa do ministro ao Cristo Sacerdote, Mestre e Pastor, [12] “para servir de instrumento de Cristo à sua Igreja. Pela ordenação, a pessoa se habilita a agir como representante de Cristo, Cabeça da Igreja, em sua tríplice função de sacerdote, profeta e rei”. [13] Trata-se de um caráter espiritual indelével, que acompanhará por toda a eternidade a pessoa do ordenado, e o que habilita a agir “in persona Christi Capitis”, para a realização das três funções de ensinar, santificar e de governar a Igreja de Cristo. Mas esta graça não elimina sua fraqueza humana, sua possibilidade de erro, como não elimina seus eventuais pecados. [14]  

            A eficácia de suas ações sacramentais, porém, é garantida pelo fato de que ela não depende da santidade pessoal do sacerdote, mas se realiza ex opere operato, ou seja, ela é obra do próprio Cristo, que ele representa. Mas não se pode deixar de reconhecer  que “enquanto nos sacramentos esta garantia é assegurada, de tal forma que mesmo o pecado do ministro não possa impedir o fruto da graça, há muitos outros atos em que a conduta humana do ministro deixa traços que nem sempre são sinal de fidelidade ao Evangelho e que podem, por conseguinte, prejudicar a fecundidade apostólica da Igreja”. [15] É o sentimento constante da Igreja, reafirmado no ensinamento do Concílio Ecumênico Vaticano II: “ainda que pela misericórdia de Deus a obra da salvação possa ser realizada por ministros indignos, todavia, por lei ordinária, prefere Deus manifestar as suas maravilhas por aqueles que, dóceis ao impulso e direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida, podem dizer com o Apóstolo: ‘já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim’ (Gal. 2, 20)”. [16] 

            A santificação do padre torna-se assim uma exigência lógica do seu caráter sacramental e do seu ministério, como ela é uma consequência necessária do seu batismo. O Servo de Deus João Paulo II recordava-o, na sua Carta aos Sacerdotes da Quinta-Feira Santa de 1986: “O padre encontra sempre, e de maneira imutável, a fonte de sua identidade no Cristo Sacerdote. Não é o mundo quem determina seu estatuto segundo as necessidades ou as concepções dos papéis sociais. O padre é marcado com o selo do Sacerdócio de Cristo para participar da sua função de único Mediador e Redentor. (…) Ele é ordenado para agir em nome de Cristo Cabeça, para fazer entrar os homens na vida nova inaugurada pelo Cristo, para fazê-los participantes de seus mistérios – Palavra, perdão, Pão de vida – para reuni-los no seu Corpo, para ajudá-los a se formar interiormente, a viver e a agir segundo o desígnio salvador de Deus. Em resumo, nossa identidade de padres revela-se na ação “criativa” do amor pelas almas, que comunica o Cristo Jesus”. [17] 

            O culto eucarístico do Sacerdote, seja na celebração da Santa Missa, seja na maneira como ele demonstra seu amor e cuidado pelo Augusto Sacramento, torna-se dessa forma um elemento importante de evangelização e de formação dos fiéis. Se é verdade que o padre exerce a sua missão principal e se manifesta em toda a sua plenitude quando celebra a Eucaristia, [18] tal manifestação é humanamente completa quanto ele deixa transparecer a profundidade e a sacralidade deste Mistério, para que somente o Mistério Eucarístico resplandeça, através do seu ministério, nos corações e nas consciências dos fiéis. 

            A íntima relação entre consagração sacerdotal e Eucaristia supera amplamente, portanto, a visão estreita de uma eclesiologia sócio-cêntrica, que reduz o padre a um papel de ativista filantrópico ou de mero representante da comunidade. O Sacerdote, chamado por Deus, é pelo Senhor configurado a Ele mesmo. É Deus quem consagra o seu eleito, para convertê-lo em Cristo, para “cristificá-lo”, dedicá-lo exclusivamente ao seu serviço, como a Eucaristia é pão consagrado para converter-se em Cristo.

 2. DOM E MISTÉRIO

– ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PRÁTICAS SOBRE A ESPIRITUALIDADE SACERDOTAL – 

            Apresentando uma importante coletânea do Magistério pontifício do século XX sobre o Sacerdócio católico, [19] o Cardeal Ângelo Sodano escreve: “Nesta coletânea de um século a demanda religiosa cresce, de vários ângulos ela se apresenta hoje em dia como uma consequência lógica e providencial de muitas experiências amargas e decepcionantes, e ela convida os padres a serem fortes e vigilantes, para procurar responder de maneira séria e qualificada a uma tal questão. Deixando seus padres em meio ao mundo, Jesus declarou que queria fazer deles seus mensageiros e representantes. O padre é, portanto, chamado a ser – mais do que qualquer outro cristão – “testemunha da ressurreição de Cristo” (cf. At 1, 8.22) e, como Paulo dizia de seu discípulo Timóteo, “homem de Deus”. Conclui o ilustre Prelado: “O chamado à santidade é sempre proposto como vocação e objetivo prioritário do padre. Ele é o homem de uma particular experiência pessoal e do encontro com o Cristo. O que supõe que ele se deixa levar por Ele a uma vida de fé integral, sustentada por um sólido compromisso ascético e em uma sincera tensão rumo ao Reino. (…) A Eucaristia é o coração do Sacerdócio católico. O padre é o homem da Eucaristia e é dela que ele tirará força e coragem para proclamar o Evangelho e para se tornar pronto a partilhar a fraqueza de todos. (…) A espiritualidade do padre é sobretudo baseada no amor a Cristo e à Igreja. Amor que dura toda uma vida. (…) O padre é chamado a amar com santo amor a Igreja, com o mesmo amor que o une a Cristo; a amá-la com um amor generoso, pelo qual cada renúncia, cada sacrifício, são acolhidos como um dom; a amá-la com um amor sem partilha e disponível, que não busca evasões e que permite assumir com liberdade interior os diferentes lugares e formas de ministério. Que seja suficiente à alegria do padre, a consciência de estar a serviço de Deus e do homem; para garantir a glória de Deus na salvação do homem”. [20] 

            Tal era a convicção profunda do Servo de Deus o Papa Pio XII, que afirmava durante o Ano Santo de 1950: “É impossível que o ministério sacerdotal atinja plenamente o seu fim, o de responder às necessidades de nosso tempo de uma maneira adequada, se os Padres não resplandecerem no meio do povo através do exemplo de uma santidade eminente”. [21]Este é o desafio de nosso tempo, para os Padres e para a Igreja inteira. Em meio às profundas mudanças de nosso tempo, após um período doloroso de hesitações e de crise pessoal e institucional, o Padre católico é chamado a redescobrir, na juventude do altar do Senhor (cf. Sl. 43, 4 vulg.), a identidade profunda da sua vocação. A Igreja não pode deixar de se preocupar – para usar uma feliz e bela expressão do Papa São Pio X – em “formar o Cristo naqueles que são destinados a formar o Cristo nos outros”. [22] 

            É necessário superar a tendência que, ainda hoje, leva muitas vezes a considerar aquilo que o Padre faz, em detrimento daquilo que ele é; é o ser que precede, justifica e fecunda o seu agir. Neste sentido, a recuperação de uma autêntica espiritualidade sacerdotal é uma das tarefas mais urgentes para a verdadeira renovação da Igreja. Como não lembrar aqui a palavra ardente e sempre atual de São Gregório Magno: “É necessário que o pastor seja puro de pensamento, exemplar na ação, discreto no seu silêncio, útil pela sua palavra; que ele seja próximo de todos por sua compaixão e que ele seja, mais do que todos, dedicado à contemplação; que ele seja o humilde aliado de quem faz o bem, mas, pelo seu zelo pela justiça, que ele seja inflexível contra os vícios dos pecadores; que ele não relaxe nunca o cuidado de sua vida interior em suas ocupações exteriores, nem negligencie o cuidado das necessidades exteriores pela solicitude do bem interior”. [23] 

            Na multíplice atividade que a sociedade atual exige de cada um, e, portanto, também do Padre, é necessário construir uma unidade interior, fonte de equilíbrio pessoal e de uma maturidade humana que evita a dispersão e, por conseguinte, o vazio da pessoa.  Esta unidade, que o Padre encontra na sua identificação pessoal com Cristo Pastor, foi identificada pelo Concílio Vaticano II na expressão “caridade pastoral”, assim descrita: “Os presbíteros alcançarão a unidade da sua vida, unindo-se a Cristo no conhecimento da vontade do Pai e no dom de si mesmos pelo rebanho que lhes foi confiado. Assim, fazendo as vezes do Bom Pastor, encontrarão no próprio exercício da caridade pastoral o vínculo da perfeição sacerdotal, que conduz à unidade de vida e ação”. [24] E os Padres Conciliares concluem: “Esta caridade pastoral flui sobretudo do sacrifício eucarístico, que permanece o centro e a raiz de toda a vida do presbítero, de tal maneira que aquilo que ele realiza sobre a ara do sacrifício, isso mesmo procura realizar em si o espírito sacerdotal”. [25]  

            É na Eucaristia, sacramento da presença real de Cristo, que o Padre encontra a sua razão de ser e de viver. Como para todos os cristãos e para a Igreja inteira, também para os Padres o ensinamento do Concílio Vaticano II é sempre válido e atual: “Fonte e ponto culminante de toda a vida cristã”, [26]“pela qual a Igreja vive e cresce continuamente”, [27]a Eucaristia comunica “aquela caridade para com Deus e para com os homens, que é a alma de todo apostolado”. [28] Ela se apresenta pois como ” fonte e  coroa de toda a evangelização”. [29]“Da eucaristia, como de uma fonte, corre sobre nós a graça, e por meio dela conseguem os homens com total eficácia a santificação em Cristo e a glorificação em Deus, a que se ordenam como a seu fim todas as outras obras da Igreja”. [30] 

            Neste contexto, podemos entender a insistência do Diretório para o ministério e a vida do Presbítero, publicado pela Congregação para o Clero em 1994, [31] que fala da Eucaristia como “o coração e o centro vital” do ministério sacerdotal, [32] insistindo sobre a “conexão íntima entre a centralidade da Eucaristia, a caridade pastoral e a unidade de vida do presbítero”. [33]Descendo a indicações práticas (às quais, infelizmente, em nossos dias, nem sempre se presta a atenção que elas merecem), o Diretório prossegue: “Em uma civilização cada vez mais sensível à comunicação mediante os sinais e as imagens, o sacerdote concederá adequada atenção a tudo o que possa exaltar o decoro e a sacralidade da celebração eucarística. É importante que em tal celebração se dê justo ressalto à qualidade e limpeza do lugar, à arquitetura do altar e do tabernáculo, à nobreza dos vasos sagrados, dos paramentos, do canto, da música, ao silêncio sagrado, etc. Todos estes elementos podem contribuir para uma melhor participação no Sacrifício Eucarístico. Com efeito, a escassa atenção aos aspectos simbólicos da liturgia e mais ainda o desleixo e a pressa, a superficialidade e a desordem, esvaziam-lhe o significado, enfraquecendo-lhe a função de incremento da fé. Quem celebra mal manifesta a fraqueza da sua fé e não educa os outros na fé. Ao contrário, celebrar bem constitui uma primeira e importante catequese sobre o Santo Sacrifício”. [34] 

            Este Diretório recorda ainda que o laço profundo entre o Padre e a Eucaristia não se reduz a celebrar a Santa Missa, mas prolonga-se e estende-se a toda a vida de oração sacerdotal: “a centralidade da Eucaristia deverá mostrar-se não só mediante a celebração digna e vivida do Sacrifício, mas também mediante a adoração freqüente do Sacramento, de maneira que o presbítero se apresente como modelo do rebanho também na atenção devota e na meditação assídua feita – sempre que possível – na presença do Senhor no tabernáculo. É desejável que os presbíteros encarregados da direção de comunidades dediquem amplos espaços de tempo à adoração comunitária e reservem ao Santíssimo Sacramento do altar, mesmo fora da missa, atenções e honras superiores a qualquer outro rito e gesto”. [35] 

            Prosseguindo sua atividade em favor da formação permanente dos Padres, a Congregação para o Clero, no contexto do Ano Jubilar de 2000, quis enviar uma Carta Circular aos Sacerdotes do mundo inteiro para convidá-los a uma reflexão e a um exame de consciência acerca de sua vida sacerdotal. [36] Não podia faltar nela uma reflexão sobre a atitude com relação ao Mistério Eucarístico fora da celebração da Missa: “O Presbítero tem a missão de promover o culto da presença eucarística, também fora da celebração da Missa, esforçando-se por fazer da sua igreja uma ‘casa de oração’ cristã. É necessário, antes de tudo, que os fiéis conheçam em profundidade as condições imprescindíveis para receber com fruto a comunhão. Do mesmo modo, é importante favorecer a devoção deles por Cristo, que os espera amorosamente no tabernáculo. Um modo simples e eficaz de se fazer catequese eucarística é o próprio cuidado material com tudo aquilo que se refere à Igreja e, em particular, ao altar e ao tabernáculo: limpeza e decoro, dignidade dos paramentos e dos vasos sagrados, atenção na celebração das cerimônias litúrgicas, prática fiel da genuflexão, etc. Além disso, é particularmente importante assegurar um ambiente recolhido na capela do Santíssimo, tradição plurissecular na Igreja, de maneira a garantir o silêncio sagrado, que facilita o colóquio amoroso com o Senhor. Esta capela, ou, em todo caso, o lugar onde se conserva e se adora Cristo Sacramentado, é certamente o coração dos nossos edifícios sagrados e, como tal, devemos procurar tê-lo em evidência e facilitar o seu acesso diário durante o espaço de tempo o mais largo possível, de adorná-lo na maneira devida, com amor”. [37] 

            Não se trata de um espiritualismo vago ou de um sentimentalismo religioso, hoje em dia tão em voga, nas ondas da New Age. É a tradução concreta na vida de uma visão teologicamente profunda e vital. “Somente o pastor que reza saberá ensinar a rezar, enquanto saberá também atrair a graça de Deus sobre aqueles que dependem do seu ministério pastoral, de maneira a favorecer conversões, propósitos de vida mais fervorosa, vocações sacerdotais e de consagração especial. Em definitivo, somente o sacerdote que experimenta diariamente a “conversatio in coelis”, que faz da amizade com Cristo a vida da sua vida, estará em condições de imprimir um impulso real a uma autêntica e renovada evangelização”. [38] 

            Queridos Padres, permitam-me uma observação bem pessoal. Trabalhando por muitos anos em Roma, a estudar os dolorosos casos de abandono do ministério, pude observar como um dos primeiros sinais da crise destes irmãos nossos não é, em geral, o problema afetivo, mas o esfriamento e o enfraquecimento na vida espiritual, na oração, como também o abandono da celebração diária da Santa Missa. A certeza da fé debilita-se, as opiniões contrárias à fé da Igreja ou carregadas de ideologias se insinuam, e acaba-se por perder o sentido profundo do próprio Sacerdócio, criando-se um vazio no coração do Padre. É somente então, na imensa maioria dos casos, que sobrevém a necessidade humana de preencher este vazio existencial com um laço humano. Estamos já na última fase de um processo que levará definitivamente à infidelidade ao dom recebido. 

            “Servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1Cor 4, 1), é na identificação com o Cristo Bom Pastor e renovando a consciência do caráter sacramental que nós carregamos no mais íntimo do nosso ser, que nós, Sacerdotes, poderemos reforçar nossa vocação e corresponder ao dom recebido, para o bem da comunidade dos fiéis. 

III. SANTIDADE DA IGREJA, SACRALIDADE DA LITURGIA 

            Concluindo estas reflexões que apresento com simplicidade a vocês, queridos filhos e Sacerdotes, neste dia tão santo da instituição da Eucaristia e da Ordem, permitam-me  concluir com uma consideração que me parece de grande atualidade.  

            Refiro-me ao caráter sagrado da liturgia e do Sacerdócio católico. A Eucaristia e o Sacerdócio são santos porque são obra de Deus e não dos homens. São santos, portanto, por sua própria origem. Ambos nascem de Deus, por obra divina e a Ele são orientados. É missão e dever da Igreja defender esta santidade. 

            Se ao longo dos séculos elementos acidentais da celebração eucarística foram se transformando, nos ritos e nos costumes, existe no entanto algo de imutável. Refiro-me à “sacralidade” da Eucaristia, ou seja, à sua realidade de “ação sagrada”. Santa e sagrada porque nela está presente e age o Cristo, “o santo de Deus”. [39] Por esta razão afirma o Concílio Vaticano II: “Na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o Pão vivo que dá a vida aos homens mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo; assim são eles convidados e levados a oferecer, juntamente com ele, a si mesmos, aos seus trabalhos e a todas as coisas criadas”. [40] 

            Com efeito, é Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, que, representado pelo Sacerdote, entra no santuário para oferecer-se ao Pai e que anuncia o seu Evangelho. É Cristo aquele que oferece e é também Ele mesmo a oferta, o consagrante e o consagrado. A Eucaristia é ação santa por excelência, porque é ela que constitui as Sagradas Espécies, as “coisas santas dadas aos santos”, como recitam algumas fórmulas litúrgicas do Oriente. É importante repetir com força que a “sacralidade” da Missa não é algo acrescentado pelos homens à ação de Cristo no Cenáculo, liturgia primária e constitutiva, com a qual o Senhor celebrou sacramentalmente, Ele mesmo como Sacerdote, o mistério da sua Paixão, Morte na cruz e Ressurreição, o seu Sacrifício redentor. A “sacralidade” da Missa é uma realidade instituída por Cristo. 

            O Sacerdote do Novo Testamento oferece o Santo Sacrifício “in persona Christi”, o que quer dizer muito mais do que “em nome de”, ou “fazendo as vezes de”. “In persona” significa uma identificação específica, sacramental, com o Sumo e Eterno Sacerdote, que é o autor e sujeito principal do próprio Sacrifício, no qual Ele não pode ser substituído por ninguém. Ele, e somente Ele, o Cristo, poderia e pode ser realmente “propitiatio pro peccatis nostris … sed etiam totius mundi”. [41] Somente o Sacrifício de Cristo, e de ninguém mais, poderia possuir força propiciadora junto ao Pai, junto à sua transcendente santidade. A consciência desta realidade fundamental deve iluminar o caráter e o significado do padre-celebrante, que, realizando o Santo Sacrifício e agindo in persona Christi, é introduzido e inserido, de maneira sacramental, no âmbito desta “ação sagrada”, na qual ele associa espiritualmente todos os participantes da assembleia eucarística.  

            Esta ação “sagrada”, realizada em modalidades litúrgicas diversas, pode prescindir de elementos secundários, que aparecem e desaparecem no natural desenvolvimento dos ritos na história, mas não poderá jamais ser privada da sacralidade e da sacramentalidade essenciais, queridas por Cristo e transmitidas à Igreja, com a autoridade que vem do próprio Cristo. Este “sacrum” nunca poderá ser instrumentalizado para outros fins. Recordemo-nos, queridos Padres, que nenhum de nós é “dono” da Liturgia e, portanto, livres de adaptá-la a nossos gostos e fantasias. Lembremo-nos de que nenhum de nós deve aparecer como centro de atenção ou, o que é lamentável, fazer da celebração um palco para aparecermos. Somo “servos” dela, porque inseridos ontologicamente, por força do Sacramento recebido na nossa ordenação, no próprio mistério do Cristo, Sacerdote e Oferta. Evitemos, portanto, com zelo e amoroso cuidado, qualquer instrumentalização, qualquer particularismo, na celebração litúrgica. Celebremos com amor e devoção como a Igreja  nos pede, seguindo fielmente o que ela estabeleceu, não por um mero ritualismo, mas porque imbuídos desta verdade: é Cristo que celebra em minha pessoa. 

            A Igreja tem o dever de garantir e de assegurar o “sacrum” da Eucaristia. Esta missão torna-se ainda mais urgente, quando se vive em uma cultura desacralizada, para não dizer neo-pagã. É de se desejar que a tomada de consciência dos problemas e dos muitos abusos litúrgicos que devem hoje ser enfrentados, possa encontrar modalidades concretas de realização, de maneira a garantir, além de uma correta celebração da Eucaristia, também uma nova vitalidade da fé católica acerca do Augusto Sacramento. 

            Os ministros da Eucaristia devemos estar convencidos desta verdade, deixar-nos transfigurar por uma fé eucarística autenticamente católica, viva e profunda. E à luz de tal fé, somos chamados a compreender e a viver o nosso ministério sacerdotal. A cada celebração eucarística, como também na nossa vida sacerdotal concreta, recordemo-nos da admoestação pronunciada pelo Bispo no momento da nossa ordenação: “Toma consciência do que fazes e põe em prática o que celebras”. [42] 

            Com os melhores votos de felicidades, de santidade e de perseverança, neste nosso dia e nesta nossa festa, abençoo-os afetuosamente, em nome do Pai X do Filho X e do Espírito X Santo. 

Garanhuns, 9 de Abril de 2009. 

                                                    Fernando Guimarães

                                              Bispo Diocesano de Garanhuns

 


[1] A Igreja sempre considerou que os gestos e as palavras do Senhor durante a última Ceia foram o ato fundador dos dois sacramentos, da Eucaristia e da Ordem, mesmo se o vocabulário – Ordem e Ordenação – é tirado posteriormente da linguagem jurídica romana: cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 1587

[2] Catecismo da Igreja Católica, n. 1536.

[3] Catecismo da Igreja Católica, n. 1548.

[4] Catecismo da Igreja Católica, n. 1549. Cf. Concilio Ecumênico Vaticano II, Lúmen gentium, n. 21.

[5] Catecismo da Igreja Católica, n. 1545. A citação é de Santo Tomás de Aquino, In Ad Haebreos,  7,4.

[6] Cf. Concilio de Trento, sess. XII, can. 2 : Conciliorum Oecumenicorum Decreta, Bologna 1973; João Paulo  II, Carta Apost. Dominicae Cenae, 24 de Fevereiro de 1980, n. 2.

[7] Cf. Santo Tomás de Aquino, IV Sent., d.24, q.2, ad 1.

[8] Catecismo da Igreja Católica, n. 1546, que envia ao Concílio  Ecumênico Vaticano II, const. dogm. Lumen gentium, n. 10.  Para a doutrina do Vaticano II, ver a const. dogm. Lumen gentium, nn. 10-11 e 33-37, naquilo que diz respeito ao “sacerdócio comum”, e os nn. 18-29, no que concerne o sacerdócio ministerial.

[9] Catecismo da Igreja Católica, n. 1547.

[10] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, const. dogm. Lumen gentium, nn. 39-42.

[11] Santo Agostinho, Sermão 46, sobre os pastores, CCL 41, 530.

[12] Catecismo da Igreja Católica, n. 1585.

[13] Catecismo da Igreja Católica, n. 1581.

[14] Catecismo da Igreja Católica, n. 1550.

[15] Ibidem.

[16] Conc. Ecum. Vat. II, decr. Pesbyterorum ordinis, n. 12.

[17] João Paulo PP. II, Carta aos Sacerdotes, Quinta-Feira Santa de 1986, n. 15.

[18] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 28 ; decr, Presbyterorum Ordinis, nn. 2 ; 5 ; decr. Ad gentes, n. 39.

[19] Il sacerdozio ministeriale nel Magistero Ecclesiastico – Documenti (1908-1993), ao cuidado de Tommaso Stenico, Libreria Editrice Vaticana 1993, 637 pp.

[20] Op. cit., pp. 7-9.

[21] Pio PP. XII, Exort. ap. Menti nostrae, 23.9.1950, Introdução.

[22] Pio PP.  X, Exort. ap. Haerent animo, por ocasião dos 50 anos de seu Sacerdócio, 4.8.1908, n. 1.

[23] S. Gregório Magno, Regula Moralis.

[24] Conc. Ecum. Vat. II., decr. Presbyterorum Ordinis, n. 14.

[25] Ibidem.

[26] Conc. Ecum. Vat. II., const. dogm.  Lumen gentium, n. 11.

[27] Conc. Ecum. Vat. II., Ibidem, n. 26.

[28] Conc. Ecum. Vat. II., Ibidem, n. 33.

[29] Conc. Ecum. Vat. II., decr. Presbyterorum Ordinis, n. 5.

[30] Conc. Ecum. Vat. II., const. Sacrosanctum Concilium, n. 10.

[31] Congregação para o Clero, Diretório para o ministério e a vida do Presbítero, Vozes,  Petrópolis 1994,  117 pp.

[32] Congregação para o Clero, Diretório para o ministério e a vida do Presbítero, n. 48, op.cit., p. 49.

[33] Ibid., n. 48, p. 50.

[34] Ibidem, n. 49, p. 51. A publicação da nova Institutio generalis do Missal Romano poderia ser uma excelente ocasião para os Padres reverem profundamente este tema. Cf. Missale Romanum – ex Decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Pauli PP. VI promulgatum Ioannis Pauli PP. II cura recognitum, Institutio Generalis – Ex editione typica tertia cura et studio Congregationis de Cultu Divinu et Disciplina sacramentorum excerpta, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2000, 114 pp. Enquanto não se publica a nova edição em português deste Missas, sugiro cordialmente que, em um dia de retiro, os Padres leiam atentamente a Introdução do Missal Romano atual, tão rica em sugestões espirituais e litúrgicas, úteis para a nossa própria espiritualidade.

[35] Ibidem, n. 50, p. 52.

[36] Congregação para o Clero, Carta circular O padre, mestre da Palavra, ministro dos Sacramentos e guia da Comunidade, em vista do terceiro milênio,  Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 1999.

[37] Id., cap. III, n. 2.

[38] Ibidem.

[39] Lc 1,34; Jo 6, 69; At 3, 14; Ap 3, 7.

[40] Conc. Ecum. Vat. II., decr. Presbyterorum Ordinis, n. 5.

[41] 1 Jo 2,2; cf. 1Jo 4,10.

[42] Ritual da Ordenação de Bispos, Presbíteros e Diáconos, Ordenação da Presbíteros, n. 135;  Paulus, São Paulo 2002, p. 70.

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