Comentário Exegético – IV Domingo da Páscoa – Ano B

Comentários exegéticos à Segunda Leitura e Evangelho:

Segunda Leitura

A FILIAÇÃO DIVINA DOS BATIZADOS
(1 JOÃO 3, 1-2)
(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: O capítulo III está escrito sob a base da filiação divina dos batizados. Após uma breve introdução em que afirma essa filiação, o resto é constituído por consequências morais e critérios éticos para se desengajar do mundo, esse inimigo dos planos divinos que, em João, supre, com muito, o papel do maligno, que também  como nome próprio e não como adjetivo, sai 5 vezes nesta epístola (2, 13; 2, 14; 3, 12; 5, 18 e 5, 19). Nesta epístola, filhos de Deus sai 4 vezes: a primeira, como efeito do amor do Pai (3, 1); a segunda, para afirmar nossa filiação como coisa segura e atual (3, 2); a terceira, distinguindo entre filhos de Deus e filhos do diabo (3, 10); e, finalmente, como objeto especial de nosso amor (5, 2). Adverte-se sobre um dualismo moral, não essencial, entre um Deus bom e um deus mau, como os gnósticos admitiam. Esse dualismo está entre os diversos modos de atuar entre os homens, como era o caso de Caim e Abel, que se repete nos tempos modernos (3, 12). Finalmente, a palavra mundo, como inimigo dos planos divinos e dos filhos de Deus, aparece 16 vezes na epístola, das quais 3 formam parte deste capítulo (3, 1; 3, 13 e 3, 17). O mundo tem dois significados em João: um neutro, como é o lugar onde moramos nesta vida (2, 17; 3, 17; 4, 3; 4, 9; e 4, 17). O outro, com o sentido de oposição aos planos divinos, está nos outros versículos (2,2; 2,15; 3, 1; 3, 13; 4, 14; 5, 4 e 5, 5). Sendo o mundo suficientemente poderoso para se opor a Deus, não obstante, ele já está sendo vencido, especialmente pela fé, como comentamos em 5, 4 no II domingo da Páscoa. E nestes versículos, João fala do amor como vínculo que nos une a Deus e que deve ser retribuído pelos homens, como filhos,  com agradecimento e obediência. Vejamos os versículos do dia de hoje.
FILHOS DE DEUS: Vede como é  o amor que o Pai nos tem dado, de modo a sermos chamados filhos de Deus [kai esmen =y somos). Por isto o mundo não nos conhece, porque não o conheceu a Ele (1). Videte qualem caritatem dedit nobis Pater ut filii Dei nominemur (et sumus) propter hoc mundus non novit nos quia non novit eum. VEDE: É uma exclamação que invita a contemplar uma maravilha, presente a todos os leitores. A ágape divina [amor] é uma realidade espiritual, que deve ser contemplada pela meditação e reflexão às quais convida o apóstolo em seus parágrafos posteriores. Trata-se de apreciar o amor de Deus para conosco. O vede inicial é como o gostai e vede quão suave é o Senhor (Sl 34, 9). O AMOR: O grego  ágape [= charitas latino] é traduzido por amor. A tradução mais tradicional era caridade; mas, modernamente, prefere-se amor [em inglês love]. Assim, das 115 vezes que aparece no NT 112, são traduzidas por love na bíblia NAS. No evangelho de João temos estes dois exemplos: Maior amor ninguém tem do que aquele que dá a sua vida por seus amigos (Jo 15, 13) e assim, o amor com o qual me amaste, esteja neles e eu neles (Jo 17, 26). E, precisamente nesta carta, sai 14 vezes das quais, neste capítulo,  temos três 3, 1; 3, 16 e 3, 17. Em todas elas é um amor prático, ou seja, de praticar uma obra, em si mesma difícil, que indica a estima e prioridade que o outro tem em nossa vida. O maior amor consiste em  entregar a vida, como afirma o autor em 3, 16; mas, à parte disso, está o fato de assumir como filho quem era inicialmente um inimigo e de categoria tão ínfima como pode ser um mendigo com respeito a um rei. Pois a esse inimigo mendigo, Deus o exaltou, dando-lhe o título e a realidade de filho. Entre parêntese temos acrescentado no grego e somos [kai esmen], que está na Vulgata, sem dúvida por influência de Rm 8, 16: O mesmo Espírito Santo dá testemunho, juntamente com nosso espírito, de que somos filhos de Deus. E o mesmo Paulo afirmará em 2 Cor 6, 16: nós somos templos do Deus vivo. Com o batismo, o Espírito santo entra em nós de modo semelhante a como ele interveio na encarnação: O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra, por isso, aquele que vai nascer será santo e será chamado Filho de Deus (Lc 1, 35). Embora a filiação de Jesus é essencialmente diferente da nossa, existe não obstante uma semelhança muito particular: em ambos os casos o Espírito Santo é o morador de um homem e o transforma em templo da divindade. Esta realidade se impõe ao mero título de filho. E conforme a esta realidade nós e Jesus somos também únicos ou uma só coisa e podemos formar um só corpo e somos participantes de um só Espírito como é todo corpo humano independente. Por isso, Jesus roga ao Pai para que seus discípulos sejam como ele e o Pai são, também uma só coisa (Jo 17, 11), declaração que confirmará no versículo 17, 21. A conclusão é muito importante e a deixaremos para o final do versículo que estamos comentando. Não é de se estranhai que Jesus diga a Nicodemos que para entrar no Reino deve um homem nascer de novo… pela água {batismo} e pelo Espírito [o dom pessoal do próprio Deus] (Jo 3, 3 e 3, 5). E desse modo viveremos enxertados na videira verdadeira que é o próprio Jesus (Jo cp. 15). E qual é o causante de tais maravilhas? O amor que Deus tem por nós. Portanto a base de toda transformação e felicidade sempre será o amor. O MUNDO: O Kosmos grego tem agora o sentido de grupo humano contrário aos planos divinos, especialmente aos que exigem o reconhecimento de Jesus como Salvador do gênero humano. Não reconhece o Filho e consequentemente não pode reconhecer o Pai. Cristo é o Salvador por sua cruz máxime expoente do amor ao Pai e aos homens e não a gnose, ou conhecimento, transmitido a nós como Mestre da realidade divina. NÃO CONHECE: O verbo ginöskö <1097> tem o sentido de reconhecer além do simples saber. A razão de não reconhecer os filhos é porque o mundo não conhece bem o Pai. Jamais uma filosofia, por mais interiorizada e profunda, chegaria por si mesma a reconhecer um Pai num deus elaborado como Teosofia e não revelado como Teologia. Aquela depende unicamente da razão humana [sabedoria sobre Deus]  e esta é revelação [palavra de Deus]. CONCLUSÃO: A filiação divina que em Cristo se inicia com a Encarnação e permanece como essência, em nós inicia-se no Batismo e, sendo acidental em essência, e habitual em peculiaridade atributiva. É como a cor da pele que só a morte [neste caso o pecado] pode modificar. Daí que o batismo imprima caráter. Nós cristãos somos outros Cristos para Deus e como filhos tão amados como era o Unigênito, pois em todos nós habita o Espírito. Não somos fogo; mas estamos, como o metal, fundidos nele e nele transformados, segundo o paradigma dos doutores da Igreja. O amor de Deus para conosco nos rodeia, nos anima e nos mima, de modo que ninguém nos poderá separar dele, a não ser a própria culpa e o abandono consciente por nós provocado. Vivemos no Amor e do Amor estamos rodeados. DEle finalmente seremos saciados. Consequentemente, João poderá firmar que Deus é AMOR: Vede pois, quão notável é o amor de Deus!
O FUTURO: Amados, agora filhos de Deus somos e ainda não apareceu que seremos. Sabemos que se se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como é (2). carissimi nunc filii Dei sumus et nondum apparuit quid erimus scimus quoniam cum apparuerit similes ei erimus quoniam videbimus eum sicuti est. AMADOS: O apóstolo inicia esta segunda parte, na qual olha o futuro, com uma fórmula de afeto que muitos traduzem com o latim por caríssimos, a mesma fórmula que usou em 2, 7. AGORA: Está em contraste com o ainda não, como um princípio que está a ser completado no tempo. Com efeito: filho é aquele a quem foi comunicada a vida do pai. E, precisamente, essa vida divina, que o apóstolo chama de eterna, já está em nós, como início e promessa (2, 25). Essa vida tem um inconveniente, qual seja, a falta de amor ou melhor, o ódio e por isso dirá em 3, 15 que quem odeia seu irmão é homicida e nenhum homicida tem em si mesmo a vida eterna. Essa vida era a mesma que tinha o Filho no seio do Pai, como afirma em 5, 11. Não seríamos verdadeiros filhos se não tivéssemos essa mesma vida da qual é partícipe o Filho. MANIFESTAR: Porém, essa vida eterna ainda não foi manifestada de um modo claro em nós, ou seja, em glória, em doxa, como dizem os evangelhos como se manifestou em Jesus no Tabor. Esta manifestação a vivemos agora pela fé, na  esperança. Quando acontecerá a verdadeira manifestação?  A maioria dos intérpretes fala da Parusia como em 2, 28. O sentido seria este: quando Cristo, juiz supremo, fizer sua aparição em doxa e majestade, seremos semelhantes a Ele [os apóstolos se sentarão em 12 tronos (Mt 18, 28 e Lc 22, 30), para fazer o mesmo julgamento que Jesus] e teremos os dotes de sua humanidade gloriosa e veremos a Deus no seu Filho, o Verbo, que é a sua imagem eterna. Uma outra hipótese é explicar a frase pela visão beatífica no fim de nossa estância terrestre, sendo partícipes do modo mais perfeito da natureza divina. SEMELHANTES: O omöios grego pode ser traduzido por semelhante ou por igual. O inglés usa like, que podemos traduzir por como. João em 10, 34-35, cita Jesus falando da Escritura: Eu disse: Vós sois deuses (Sl 82, 6). E Jesus comenta: a escritura não pode falhar. (Jo 10, 35). Desta forma, o omöios pode ser traduzido como igual. Seremos como Jesus, embora não por natureza, mas por participação. Embora tenhamos em grego a palavra isos palavra que emprega o 4º evangelho em 5, 18: fazendo-se igual a Deus, igualdade que Paulo confirma em Fl 2, 6. Existe, como vemos, uma diferença entre Jesus e nós, que o NT confirma com as duas palavras omöios e isos. Mas a nossa semelhança é de vida, não de substância, que a tornaria igual à de Cristo Jesus. O VEREMOS: Nesta palavra encontramos a verdadeira identidade com Deus: Ninguém podia ver a Deus e viver: não podes ver a minha face, porque o humano não é capaz de me ver e continuar em vida (Êx 33, 20), dirá Javé a Moisés. Logo, se o veremos como Ele é, é porque não somos mais simples humanos mas transformados em seres divinos. A visão é o termo da perfeição humana, não a divinização [Theösthai] ou a apoteosis [Apotheösthai] dos gnósticos, que consistiam em uma absorção no Uno ou Todo das partes separadas. Como filosofia e prática a Theosis era o terceiro estágio, precedido pela purificação e iluminação, da praxis dos gnósticos cristãos orientais. A perfeição consistia em conseguir a unidade com a Luz, transformando  assim, o ser humano numa Imagem e semelhança de Deus.  A atual Theosis cristã é um método místico de união com Deus. Já a Apotosis em tempos do Império Romano era uma cerimônia em que se deificava uma personagem que recebia as honras divinas. No campo de Marte, no subúrbio romano, preparava-se uma fogueira em forma de altar, feita como troncos de árvores. Sobre ela, uma figura de cera do herói. Uma águia voava no momento em que se ascendia a fogueira; a ave representava a alma do defunto que era carregada até o céu. A visão, tal como Ele é, é também a fórmula paulina em 1Cor 13, 12: agora vemos em espelho e de modo confuso, mas então face a face. Essa visão, que os documentos eclesiais chamam de imediata, intuitiva e facial. Veremos a Deus totus non totaliter, asseguram os teólogos. Mais,  veremos as coisas como refletidas no espelho divino que se tornará nosso modo de ver muito mais que de entender. Uma curiosidade: Os pastores de Fátima viram a luz divina,  segundo estas palavras escritas por Lucia: A Senhora abriu as mãos, comunicando-lhes uma luz intensa, como que reflexo que delas irradiava que penetrava-lhes o peito e o mais profundo da alma, fazendo-os ver a si mesmos em Deus que era essa luz.
CONCLUSÃO FINAL: Tendo em consideração que João escreve a carta como apologia contra os gnósticos de seu tempo, estaremos certos ao afirmar que ele considera o amor como vínculo de união com Deus ao contrário do conhecimento [gnose]. Daí sua constante afirmação de que Deus é amor e que nesse amor encontramos a verdadeira causa de união com Deus, do qual somos filhos. Esse amor tem também uma  consequência natural ao amar como irmãos os que eram próximos segundo a Lei. Aí encontraremos a verdadeira Teosis que nos tornará unidos a Deus, cuja visão será como a de Jesus, o Cristo, que não  é unicamente figura, mas protótipo de todo homem que o aceita na fé batismal. S Leão Magno declara, em seu sermão 12 da Paixão, que o único e mesmo Cristo está não apenas nesse homem {Jesus}, primogênito de toda criatura , mas também em todos os seus santos. E podemos acrescentar com Paulo para que Ele seja tudo em todos (Cl 3, 11).

Evangelho

O BOM PASTOR
(JO 10, 11-18)
(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

PROLEGÔMENOS: TEMPOS ANTIGOS:1º-Os ancestrais dos israelitas, desde Jacó, foram pastores de ovelhas como vemos por Gn 46,32. Por isso, não eram bem considerados pelos egípcios que achavam essa profissão abominável (Gn 46,34). 2º- Por isso,  os antigos profetas tomam como símbolo do povo um conjunto de ovelhas cujo pastor é Javé. Salmos 23,1 e Isaías 40,11 são exemplos evidentes desta metáfora bíblica. 3º- Porém Javé pastoreia seu rebanho de forma indireta através de pastores secundários. Especialmente isso é afirmado de reis e dirigentes como o caso de Ciro (Is 44,28). A maioria das vezes esses pastores foram maus pastores, que se tornaram interesseiros e mercenários; por isso o rebanho se tornou como ovelhas desgarradas, desviadas por seus pastores (Jr 50,6). 4º- E Javé promete dar a elas, pastores, segundo seu coração (Jr 3,15). Como conclusão, podemos esperar, nos tempos de Jesus alguma referência a estas metáforas que entre os profetas tinham tanta relevância. TEMPOS DE JESUS: À parte Lucas, que escreve diretamente para pagãos, em cuja mentalidade o pastor era ofício vil, e que unicamente trata dos mesmos como sendo as primeiras testemunhas de seu nascimento, encontramos  algumas referências em Mateus e Marcos, que descrevem a situação do povo como sendo ovelhas sem pastor (Mt 9, 34 e Mc 6, 34). Daí a rejeição do povo à pessoa de Jesus, precedida como estava pela hostilidade de seus dirigentes. Há, porém, uma pequena referência ao próprio Jesus como pastor no horto de Getsêmani quando citam Ferirei o pastor e as ovelhas serão dispersas (Mt 26,31 e Mc 14,27), com o qual desculpam a covardia dos apóstolos que abandonam seu Mestre na hora difícil. JOÃO: Mas é João quem realmente toma a metáfora pastoril e a desenvolve de uma maneira completa. Jesus se intitula a porta. E imediatamente se dá a si mesmo o título de o pastor, o belo, segundo o texto grego; mas que tem sentido de honesto, virtuoso, bom, autêntico, verdadeiro. De modo que a melhor tradução seria “Eu sou o único pastor, o verdadeiro”. E imediatamente, desenvolve esta metáfora, transformando-a em alegoria. São duas as qualidades do verdadeiro pastor: 1a) Dará a vida pelas ovelhas; 2a) Porque as conhece (=as ama em sentido joanino) já que convive com elas como se fossem parte de sua família. Ambas são exploradas pelo evangelista  para contrastarr Jesus com os pastores mercenários que faziam seu trabalho pelo salário.  O conhecer as ovelhas é como o conhecer do Pai e do Filho: Um conhecer impregnado de amor, de modo que é por esse conhecer que, em definitivo, Jesus dá a vida pelas ovelhas.

ROTUNDA AFIRMAÇÃO: Eu sou o pastor, o belo [kalós]. O pastor, o belo, dá sua alma [quch <5590>, psychê]  em favor das ovelhas (11). Ego sum pastor bônus; bonus pastor animam suam dat pro ovibus. A palavra que temos traduzido por belo tem como primeira acepção saudável, apropriado, vindo finalmente a significar belo. Em grego existe uma palavra própria para bom: agathos. Um exemplo é quando Jesus diz ao jovem que só Deus é agathós (Mc 18, 18). No NT, ambos os termos se empregam para significar bom [agathós 104 vezes e kalós 99].Um exemplo entre muitos é karpon kalon [semente não danificada] de Mt 3, 10 e Lc 3, 9. Aqui, pois, podemos traduzir por o pastor, o bom, que poderia ser traduzido por legítimo, autêntico [ou verdadeiro] em oposição aos pastores de Israel, tantas vezes criticados nas Escrituras e aos deuses pastores da antiguidade. Jahveh era considerado como o verdadeiro pastor de Israel (Ez 43, 11-16). Por isso se declarar o pastor, o que verdadeiramente é legítimo, é estar no lugar de Jahveh; ou seja, o enviado por este último para pastorear o povo de Israel. De Davi, que era pastor, diz um Midrash que era yafeh roeh que pode ser traduzido por belo pastor (1Sm 10, 11). De fato,  lemos no versículo 12 que era de bela aparência e o hebraico usa o mesmo termo yafed roeh. Sem dúvida que esta reminiscência de Davi, como pastor e rei, figura do Messias, influenciou o redator da passagem de hoje. Poderíamos traduzir kalós finalmente por verdadeiro, já que significa muitas vezes próprio, ao contrário de falso, desleal, como vemos descritos semelhantes pastores na parábola aos quais chama de assalariados. O verdadeiro pastor está ligado ao seu rebanho buscando o melhor para ele. E para indicar que só o bem do gado o preocupa e não existem interesses espúrios, Jesus afirma nawequência que dá a vida [psychê] pelas ovelhas. Na realidade, psychê significa alma, que em hebraico é nefesh, ou seja, o sopro da vida como lemos em Gênesis em 2, 7. Daí que muitas vezes psyché é traduzida por vida, com toda probabilidade de ser o termo correto. Um outro termo que podemos esclarecer é probaton. Na realidade, significa o gado menor, ou seja ovelhas e cabras, que não exclui o elemento masculino [bode e carneiro]; mas que pela superioridade numérica do feminino, dá  relevância à mesma na transcrição semântica da palavra e por isso se escolhe ovelhas.

CONDUTA DO MERCENÁRIO: O assalariado, porém, e que não é pastor, do qual não são próprias as ovelhas, vê o lobo vindo e deixa as ovelhas e foge; e o lobo as arrebata e dispersa as ovelhas (12). Mercennarius et qui non est pastor cuius non sunt oves propriae videt lupum venientem et dimittit oves et fugit et lupus rapit et dispergit oves. Jesus distingue entre o verdadeiro dono das ovelhas e o assalariado que só tem interesse em seu dinheiro. As ovelhas para ele não são bens pelos quais ele deva expor sua felicidade e menos sua vida. O assalariado [ou mercenário como outros traduzem] foge porque é um assalariado e não lhe importam as ovelhas (13). Mercennarius autem fugit quia mercennarius est et non pertinet ad eum de ovibus. Consequentemente ele não enfrenta o lobo e foge dele. A razão é que é um assalariado e só tem interesse em sua remuneração pelo serviço prestado e não nas ovelhas do rebanho. Daí o nome do mesmo [misywtov misthôtos] derivado de misthós [salário, prêmio, lucro]. Assim ele abandona as ovelhas de modo que o lobo possa fazer do rebanho o que bem quiser. Algumas ele mata e outras se dispersam.

CARACTERÍSTICAS DO AUTÊNTICO: Eu sou o pastor [que é], o autêntico, e conheço as minhas e sou conhecido pelas minhas (14).  Ego sum pastor bonus et cognosco meas et cognoscunt me meae. O verbo conhecer tem na Bíblia características especiais. Significa ter experiência concreta de uma coisa, como conhecer o bem e o mal (Gn 2,9.17), a guerra (Jz 3,1), a paz (Is 59, 8), o sofrimento (Is 53, 3), o pecado (Sb 3, 13). Se são as pessoas as conhecidas, a palavra expressa tanto relações familiares (Dt 33,9) quanto as relações conjugais íntimas (Mt 1, 25). Evidentemente que aqui significa um trato muito semelhante ao familiar, como veremos no parágrafo seguinte. Conhecer implica uma negativa à rejeição e uma atitude positiva em que o amor é a base da relação tanto mais íntima, quanto mais profundas são as convivências. No versículo 3, Jesus tinha afirmado  que chama as ovelhas uma a uma, o que implica uma relação pessoal e íntima com cada uma. A comparação que Jesus traz, em continuação, é a do conhecimento que têm um pai e um  filho entre si: Como me conhece o Pai e eu conheço o Pai. Por isso também doo minha vida pelas ovelhas(15). Sicut novit me Pater et ego agnosco Patrem et animam meam pono pro ovibus. Tenho traduzido o Kai [et latino] que une os dois hemistíquios por um por isso também, que é o lógico e parece ser a tradução do Wav hebraico, sublinhar ao mesmo sentido escolhido. Aparentemente, a primeira parte do versículo, deveria ir com o segundo hemistíquio anterior formando um conjunto: conheço minhas ovelhas como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. O segundo hemistíquio do versículo 15 seria a conclusão: assim com eu dou a vida em obediência ao Pai, assim entrego essa mesma vida por amor pelas minhas ovelhas. Com esta frase,  Jesus diz que não é só a obediência ao Pai a razão de sua vinda e morte, mas também entra nessa mesma linha o amor aos homens, que formam parte de sua intimidade e companhia. Ele dirá que não existe maior amor que dar a vida pelos amigos (Jo 15, 13). O rebanho se transformou em família, em círculo íntimo de amigos.

UM PARÊNTESE: Pois tenho outras ovelhas que não são deste aprisco e a elas devo também conduzir e ouvirão minha voz e se formará um rebanho, um pastor (16).  Et alias oves habeo quae non sunt ex hoc ovili et illas oportet me adducere et vocem meam audient et fiet unum ovile unus pastor. Tem existido uma questão candente dentro dos intérpretes que parece se deduzir do versículo: os gentios como parte do rebanho de Cristo. Teria dito Jesus estas palavras do versículo 16 que parece que estão interpoladas, de modo que retirando-as, o discurso ganha em lógica e profundidade, ou são como tantas vezes em João, um comentário pós fato, mas importante do ponto de vista da catequese? Tanto faz, desde que saibamos que os apóstolos estavam dirigidos pelo Espírito de Jesus e que seus comentários são, de fato, autêntica inspiração. Mas a que ovelhas se refere Jesus? É evidente que aos povos pagãos que não entravam dentro da previsão dos profetas e do Pacto da Aliança. E como se tem cumprido esta previsão! Evidentemente que o Concílio de Jerusalém resolveu aparentemente a questão, mas os fatos mostram ainda de como a coisa não foi resolvida absolutamente, quando Paulo teve a discussão com Pedro sobre a conduta ambígua deste último (Gl 2, 11-14). Não é possível que a frase seja só uma adição dos dirigentes da primitiva Igreja. As palavras de Jesus eram sagradas de modo a impedir recortá-las ou reformá-las. Além disso, temos passagens de Jesus que indicam que os gentios seriam admitidos no Reino, como virão muitos do oriente e do ocidente e se assentarão à mesa no reino dos céus (Mt 8, 11). Um ponto à parte é a tradução da Vulgata que no lugar de rebanho [poimnë, grex] traz aprisco [aulë, ovile] e que não tem nos diversos manuscritos gregos nenhuma base. O sentido não muda muito a não ser que se queira distinguir entre as ovelhas propriamente ditas e o aprisco em que outras ovelhas podem ser recolhidas, embora não pertencentes ao rebanho original. Pois este evangelho que  nós chamamos de parábola tem as características de uma verdadeira alegoria.

CONSEQUÊNCIA: Por isso o Pai me ama, porque eu doo minha vida para de novo tomá-la. (17). Propterea me Pater diligit quia ego pono animam meam ut iterum sumam eam. Este versículo deveria ocupar o lugar imediato após o número 15, no qual Jesus afirma que doa sua vida pelas ovelhas. É uma doação até a morte pois ele toma de novo a sua vida ou psychê. EXPLICAÇÃO: Ninguém a arrebata de mim mas eu a doo por mim mesmo. Tenho poder de doá-la e tenho poder de novo de retomá-la. Este mandato recebi do meu Pai (18). Nemo tollit eam a me sed ego pono eam a me ipso potestatem habeo ponendi eam et potestatem habeo iterum sumendi eam hoc mandatum accepi a Patre meo. Ao ler os evangelhos temos a impressão de que a morte de Jesus foi programada por seus inimigos e que ele nada tinha a decidir. Porém, João nos dá uma magnífica explicação sobre a morte do Mestre Pastor: Ele entrega voluntariamente sua vida (=sacrifício); ninguém a poderia tirar dele. E a entrega  não tanto pelo amor das ovelhas, mas para mostrar ao mundo seu amor ao Pai. É por isso que o Pai o ama e nele se compraz como diz Marcos 1,11. A morte de Jesus foi voluntária, de modo que dEle podemos afirmarmos que entrega a vida e a retoma de novo, para passar pela instância da morte de modo espontâneo e assim suscitar o amor do Pai por ser obediente até a morte e morte de cruz (Fp 2, 8). A morte não foi em si mesma o maior motivo do amor de Jesus ao Pai e aos homens, suas ovelhas como pastor, mas o tipo de morte, a mais cruel e mais humilhante da época, pois morreu feito pecado [amaldiçoado pelo Pai] e no meio de terríveis tormentos [como inimigo da humanidade]. Porém, esse foi o mandato mais duro recebido por Jesus e que ele cumpriu de maneira exata e voluntária. A morte de Jesus foi um sacrifício e por isso dirá na última ceia: este é meu sangue derramado em favor de vós (Lc 22, 20). Era como o sangue da vítima que se oferecia pelo perdão do pecado. Não esqueçamos que, segundo o pensamento da época, no sangue estava a vida. Daí o mandato de não beber o sangue e, se derramado, devia voltar à terra, porque toda vida pertencia ao Senhor. O sangue de Jesus  foi, pois,  derramado para salvação dos amigos, das ovelhas do rebanho do qual ele era o autêntico pastor.

PISTAS: 1) Tanto no AT como nos tempos de Jesus, o pastoreio de reis era um modo de aproveitar-se dos súditos como diria Samuel em 6, 10-18 e como comentaria Jesus: os governadores das nações a dominam e os grandes as tiranizam (Mt 20, 25). É por esta razão, entre outras, que Jesus dirá que seu Reino não é como os deste mundo (Jo 16, 26). O pastor verdadeiro toma como lei o serviço, até aquele que era próprio dos escravos: também deveis lavar-vos os pés uns aos outros (Jo 13, 14). Porque o servo e o enviado não são maiores do que seu Senhor ou de quem o enviou (Jo 13,16). Logo, examinemos nosso proceder com o exemplo de Cristo.
2º) A propósito do comentário no versículo 16, temos afirmado que os apóstolos, como enviados, tinham o mesmo Espírito de Jesus, Espírito que foi transmitido por eles a seus sucessores, os que hoje chamamos bispos e que a Igreja chama de pastores. Os pastores evangélicos deixam a interpretação das escrituras nas mãos dos leitores. Cada leitor pode ser um autêntico intérprete. A palavra escrita substitui a voz dos pastores. Por isso, temos tantas igrejas quantos leitores. E os que não sabem ler? Como podem ser intérpretes das palavras de Jesus ou das palavras escritas no AT? Não será melhor escutar o que Paulo diz aos Romanos: É que não ouviram? Sim, ouviram; porque diz a Escritura: Por toda a terra se estendeu sua voz e até os confins do mundo chegaram suas palavras (Rm 10, 8). O kerigma sempre teve como base a voz.
3º) A verdadeira razão para distinguir um bom pastor é o dinheiro. Se ele se aproveita e se torna rico e influente não é bom pastor. É o mercenário. A pobreza é a medida de sua dedicação ao rebanho. O direito antigo dividia os emolumentos em três partes iguais: a fábrica da igreja, os pobres e os ministros. Entende-se como fábrica da igreja os chamados insumos e a limpeza e reparação da mesma, junto com os materiais necessários como vinho, hóstias, velas e ornamentos. Não é necessário que se edifiquem novas igrejas ou transformem as velhas de forma a gastar todo o dinheiro nelas e deixar os pobres fora de atenção.
4º) Conhecemos as ovelhas? Precisamente uma das grandes deficiências das paróquias modernas é que são demasiadamente grandes. É impossível manter relações com todos eles. Que tal se, pelo menos, tivéssemos uma ou duas horas de confissão ou de falar com os que têm problemas, abrindo para essas pessoas a secretaria da paróquia?

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