Comentário Exegético – XI Homilia do Domingo Comum – Ano B

EPÍSTOLA (2 Cor 5, 6-10)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

   PELA FÉ: Estando, pois, confiantes e sabendo que residentes no corpo vivemos ausentes do Senhor (6), porque por fé estamos andando, não por visão (7). Audentes igitur semper  et scientes quoniam dum sumus in corpore peregrinamur a Domino per fidem enim ambulamus et non per speciem. CONFIANTES [tharrountes<2292> =audentes] é o particípio presente do verbo tharreö com o significado de ter confiança, se atrever como no versículo 8 e com o significado de confiança ou ter confiança em alguma pessoa como em 2 Cor 7, 16: Regozijo-me de em tudo poder confiar em vós. Também falar audazmente como em Hb 13, 6: E assim ousemos [tharrountes] dizer: O SENHOR é o meu ajudador. Finalmente, vemos em 2 Cor 10, 1: Quando presente entre vós, sou humilde, mas ausente, ousado [tharrö]/ para convosco. Temos, pois, optado pela confiança. RESIDENTES [endëmountes<1736>=sumus]. Do verbo endëmeö temos endëmos, como pessoa que habita entre os de sua terra e que não viajou ao exterior. Daí  estar em casa, e logicamente viver no corpo [en tö sömati] que será o oposto a pros ton Kyrion [unir-se e ao Senhor no céu (2 Cor 6, 9).  VIVEMOS AUSENTES [ekdëmoumen<1553>= peregrinamur] É o presente do indicativo do verbo ekdëmeö, de significado emigrar, ir ao estrangeiro, viver em terra estranha, estar exilado, que  aparece nos escritos paulinos junto com ek tou sömatos [fora do corpo] (2 Cor 5, 8), como se o corpo fosse o natural habitáculo do Espírito;  ou apo tou Kyriou [fora do Senhor] (que vemos neste versículo). Ambos os termos são opostos: um com o prefixo en [dentro] e outro com ek [fora] e a palavra demos [povo]. A maioria traduz as duas palavras por presentes e ausentes. Na TEB a tradução é: habitar no corpo e fora de nossa morada. A razão é que vivemos [estamos andando] ou caminhamos pela fé e não temos ainda a visão própria da bem-aventurança.

        É PREFERÍVEL MORRER: Estamos confiantes, portanto, e nos alegramos mais, estando ausentes do corpo e presentes diante do Senhor (8). Audemus autem et bonam volunotatem habemus magis peregrinari a corpore et praesentes esse ad Deum. NOS ALEGRAMOS [eudokoumen<2106>=habemus bonam voluntatem]. O verbo eudokeö tem como significado primordial considerar bom, agradar, como em Lc 12, 32: Não temais, ó pequeno rebanho, porque o vosso Pai agradou dar-vos o reino. Mas também um segundo significado é comprazer-se, estar satisfeito, como em Mt 3, 17: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo. É neste sentido que podemos traduzir que nos alegramos mais, se ausentes do corpo [abandonado o corpo] estivéssemos presentes diante do Senhor. De um modo mais explícito, vemos este mesmo sentimento paulino em Fp 1, 23: De ambos os lados estou em aperto, tendo desejo de partir, e estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor. Podemos dizer que Teresa de Jesus magnificamente dá estribilho a estas palavras de Paulo em sua letrinha : “Vivo sin vivir en mí,y tan alta vida espero, que muero porque no muero”.

AGRADÁVEIS A DEUS: Por isso também aspiramos, quer presentes, quer ausentes, para lhe sermos agradáveis (9). Et ideo contendimus sive absentes sive praesentes placere illi. A tradução menos literal e mais inteligível é dada por SBP: Contudo, quer estejamos na presença do Senhor, quer vivamos exilados dele, o que nos interessa é agradar a Deus. ASPIRAMOS [filotimeomai <5389>=contendere]: o verbo grego em voz média indica considerar uma honra, ambicionar, aspirar como em Rm 15, 20: Desta maneira me esforcei por anunciar o evangelho, não onde Cristo foi nomeado, para não edificar sobre fundamento alheio. Com o significado de procurar em 1 Ts 4, 11: Procureis viver quietos, e tratar dos vossos próprios negócios. É, pois, um esforço que aspira a um objetivo considerado como bem apetecível. E esse objetivo é o fim de toda vida cristã: agradar a Deus. AGRADÁVEL [euarestos<2101>=placere]: o latim traduz por um infinitivo o que no texto grego é um adjetivo de forma que ser aceitável é traduzido por agradar. É o conselho que Paulo dá aos efésios: Procurem sempre aquilo que mais agrada ao Senhor (Ef 5, 10). E por isso, na sua opção de viver ou encontrar-se com o Senhor, Paulo escolhe a vontade divina como a melhor opção de sua vida. Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho. Mas, se o viver na carne me der fruto da minha obra, não sei então o que devo escolher (Fp 1, 21-22)

O TRIBUNAL: Porque  a todos nós é necessário apresentarmos perante o tribunal do Cristo, para receber cada um as merecidas [consequências] do corpo segundo as que praticou, quer de bom quer de mal (10). Omnes enim nos manifestari oportet ante tribunal Christi ut referat unusquisque propria corporis prout gessit sive bonum sive malum. TRIBUNAL [bëma<968>=tribunal]: degrau, um passo, extensão de um pé, como em At 7, 5: E não lhe deu nela herança, nem ainda o espaço de um pé [bëma]. Mas especialmente Bëma é a cadeira do juiz  ou tribunal de justiça: Estando ele [Pilatos] assentado no tribunal, sua mulher mandou-lhe dizer: Não entres na questão desse justo. É o significado que Paulo usa em Rm 14, 10: Todos havemos de comparecer ante o tribunal de Cristo. É o mesmo tribunal que Paulo apresenta neste versículo. Cristo é o primeiro juiz de nossa existência do qual nós temos sido durante a vida do corpo, que Paulo diz como coisas MERECIDAS não tanto dos merecimentos, mas das deficiências também. Destas atuações devemos dar conta, tanto do bem feito como do mal causado. O juízo particular no fim da vida determinará o nosso eterno destino. Assim o cremos e o aclamamos no Credo no qual o juízo é universal no  fim do mundo, que ratificará a sentença dada pessoalmente no fim de cada vida.

 

 

EVANGELHO (Mc 4, 26-34)

 

1ª parte: A SEMENTE COM VIDA PRÓPRIA

 

(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

 

Começa de novo o tempo comum. Marcos mostra Jesus como Mestre do Reino ensinando às multidões desde a barca de Pedro (4, 1). Seu ensino é na base das parábolas ou exemplos. A parábola é uma narração que, sob o aspecto de uma comparação,  está destinada a ilustrar o sentido de um ensino religioso. Quando todos os detalhes têm um sentido e significado real, a parábola se transforma em alegoria. Como em Jo 10, 1-16, no caso do bom pastor. No AT as parábolas são escassas [um exemplo é 2 Sm 12, 1-4 em que Natã dá a conhecer seu crime a Davi] Porém no NT Jesus usa frequentemente as parábolas especialmente como parte de seu ensino do Reino dos Céus, para iluminar certos aspectos do mesmo. No dia de hoje temos duas pequenas parábolas, a primeira própria  de Marcos e a segunda compartida por Mateus (13, 21+) e Lucas (13, 18). Na parábola da semente, Jesus indica que o Reino tem uma força intrínseca que independe dos trabalhadores. Na segunda que o Reino, minúsculo nos tempos de Jesus, expandir-se-á de modo a se estender pelo mundo inteiro. Vejamos versículo por versículo as palavras de Jesus.

O REINO DE DEUS: E dizia: assim é o Reino de Deus, como se um homem lançasse a semente sobre a terra (26). Et dicebat sic est regnum Dei quemadmodum si homo iaciat sementem. Que significa Reino de Deus? No AT Jahvé, o Deus de Israel, era o verdadeiro rei e seu reino abrangia todo o Universo. Os juízes eram praticamente os seus representantes. Por isso, o seu profeta Samuel, último juiz, escutou estas palavras: Não é a ti que te rejeitam, mas a mim, porque não querem mais que eu reine sobre eles (I Sam 8, 7). A partir de Davi o reino de Deus tem como representante um rei humano, mas a experiência terminou em fracasso, e o reino de Deus acabou por ser um reino futuro escatológico como final dos tempos e transcendente, como sendo Deus mesmo o que seria ou escolheria o novo rei. Esse reino está chegando e tem seu representante na pessoa de Jesus e dos apóstolos. Nada tem de material ou geográfico, e é formado pelos que aceitam Jesus como Senhor, caminho, verdade e vida. Por isso dirá Jesus que o reino está dentro de vocês. A Igreja fundada por Jesus é a parte visível desse reino, que não é como os do mundo, mas tem sua base em servir e não em ser servido (Lc 22, 27). O oposto do amor, que é serviço no reino, é o amor ao dinheiro ou mammona (Mt 6, 24), de modo que podemos afirmar que o dinheiro é o verdadeiro deus deste mundo. A primeira comparação que revela como atua o Reino é esta parábola de Jesus, facilmente entendida como tipo, e que finalmente veremos como protótipo nas observações.

O CRESCIMENTO: E durma e se levante noite e dia; e a semente germine e cresça de um modo que ele não tem conhecido (27). Et dormiat et exsurgat nocte ac die et semen germinet et increscat dum nescit ille. É importante unir este versículo ao anterior para obter o sentido completo da parábola. O agricultor faz sua vida independente e a semente nasce e cresce sem ter nada que ver com o agricultor fora o fato de ser semeada por ele no início. Deste modo Paulo pode afirmar: Eu plantei, Apolo regou; mas era Deus quem fazia crescer. Aquele que planta nada é; aquele que rega nada é; mas importa somente Deus, que dá o crescimento (1 Cor 3, 6-7). Assim, na continuação dirá Jesus: Pois por si mesma a terra frutifica primeiramente a erva, depois a espiga, depois o trigo pleno na espiga (28). Ultro enim terra fructificat primum herbam deinde spicam deinde plenum frumentum in spica. O latim ultro expressa a boa vontade, sem coação; o trigo é chamado de pleno e o latim traduz com bom critério como sendo o fruto total ou final.

A COLHEITA: Quando, porém, tiver aparecido o fruto, rapidamente ele [o agricultor] envia a foice porque tem aparecido a ceifa (29). Et cum se produxerit fructus statim mittit falcem quoniam adest messis. Não há nada a comentar a não ser o trabalho do agricultor, que como vemos se reduz a semear e ceifar. A terra e a semente fazem o resto.

 

 

SEGUNDA PARÁBOLA: A MOSTARDA.

(Lugares paralelos: Mt 13, 31-32; Lc 13, 18-19)

 

A OUTRA COMPARAÇÃO: E dizia: a que compararíamos o Reino de Deus, ou em que parábola o assemelharíamos?(30). Et dicebat cui adsimilabimus regnum Dei aut cui parabolae conparabimus illud. Parece que Jesus medita antes de afirmar ou escolher uma comparação apropriada. Seu estilo é de chamar a atenção dos ouvintes, um simples recurso oratório que indica por outra parte uma memória viva dos ouvintes e não uma posterior reconstrução. É possível que estas palavras formem parte do método de ensino de Jesus.

A MOSTARDA: Assim como a semente da mostarda, a qual quando sendo semeada na  terra é a menor de todas as sementes sobre a terra (31).  Sicut granum sinapis quod cum seminatum fuerit in terra minus est omnibus seminibus quae sunt in terra. A mostarda é uma planta da família da couve ou repolho, de grandes folhas, flores amarelas e pequenas sementes, que tem duas espécies principais: branca e preta. A branca chega até atingir 1,2 m de altura e a preta pode chegar até 3m e 4 m de altura. A negra é comum nas margens do lago de Tiberíades e seu tronco se torna lenhoso. Por isso os árabes falam de árvores de mostarda. Esta variedade só cresce ao longo do lago e nas margens do Jordão. Os pintassilgos, gulosos de suas sementes chegam em bandos para pousar nos seus galhos e comer os grãos. As sementes não são as menores entre as conhecidas, mas parece que eram modelo, na época, de coisas insignificantes. O nome grego é sinapis e passou às línguas vernáculas porque a semente era usada junto com o mosto de uva para formar o mustum ardens [mosto ardente]. A mais comum é a branca não tão ardente como a preta, precisamente por sua maior facilidade em recolher os frutos. E quando está semeada surge e se torna maior do que todas as hortaliças e produz galhos grandes de modo que podem, sob sua sombra, as aves do céu habitar (32). Et cum seminatum fuerit ascendit et fit maius omnibus holeribus et facit ramos magnos ita ut possint sub umbra eius aves caeli habitare. Temos visto como chegam até 3 ou 4 m de altura, suficientes para aninhar os pássaros em seus galhos. O verbo  kataskenoô<2681> significa descansar, estabelecer-se, como temos visto anteriormente.

A RAZÃO DAS PARÁBOLAS: E com muitas parábolas semelhantes falava a eles a palavra do modo que podiam ouvir (33). Et talibus multis parabolis loquebatur eis verbum prout poterant audire. Vamos traduzir o último versículo que completa este para depois intentar a interpretação. Pois fora de comparação [parábola] não falava a eles; em particular, porém, aos discípulos explicava todas as coisas (34). Sine parabola autem non loquebatur eis seorsum autem discipulis suis disserebat omnia. Temos aqui uma discriminação feita sem saber a razão do por que foi escolhida por Jesus. Os discípulos tinham ocasião de saber o significado verdadeiro das comparações, por vezes não muito claras para o ouvinte geral. O caso mais evidente é o do semeador e os diversos terrenos em que a semente cai. O público em geral podia ficar com a ideia de que a semente da palavra era recebida de formas mui diversas pelos ouvintes, mas a razão destas diferenças só era explicada aos que, interessados, perguntaram junto aos doze pela explicação da mesma (Mc 4, 13-20). O encontro com a palavra é um dom de Deus, mas a resposta à mesma depende da vontade e do interesse de cada um. A explicação correspondente sempre a receberá quem esteja interessado em saber a verdade.

PISTAS: 1) Nas parábolas, Jesus geralmente não define o Reino, mas só alguns atributos do mesmo. Na primeira destas parábolas do dia de hoje temos a exposição de como o Reino se expande com uma força que não depende dos homens, mas do próprio Deus. Poderíamos dizer que descreve a força interna do Reino.

2) Na segunda parábola encontramos a visão externa do Reino. Seu crescimento seria espetacular desde um pequeno grupo insignificante como é a semente da mostarda que se parece com a cabeça de um alfinete, até uma árvore que nada tem a invejar os carrascais da Palestina.

3) Uma certeza é evidente: o Reino é uma realidade que não se pode ignorar. Em que consiste? Jesus não revela sua essência, mas devido ao nome estamos inclinados a afirmar que o Reino como nova instituição é uma irrupção da presença de Deus na História humana, que seria uma revolução e uma conquista, não violenta, mas interior do homem, e que deveria mudar a religião em primeiro lugar e as relações sociais em segundo termo. Numa época em que revoluções externas e lutas pelo poder estavam unidas a uma teocracia religiosa era perigoso anunciar a natureza verdadeira do Reino. Daí que só as externas qualidades do Reino tenham sido descritas e de modo a não levantar reações violentas. O reino sofrerá violências, mas não será o violentador (Mt 11, 12).

4) Se quisermos apurar as coisas, poderíamos atribuir ao Reino uma universalidade que não tinha a Antiga Aliança. Mas isto é esticar as coisas além do estado natural das coisas e da narração de hoje no evangelho de Marcos.

 

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