Comentário Exegético – XIX Domingo do Tempo Comum (Ano C)

Epístola (Hb 11, 1-2. 8-19)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Escrita entre os anos 64-66 sendo os designatários os cristãos da Palestina, deslumbrados pelo culto mosaico no templo. É uma carta de exortação para que não abandonem a fé, porque aparentemente o culto cristão era inferior ao cerimonioso das grandes festividades que apareciam em todo se esplendor, diante das multidões que enchiam os pátios do templo. O autor, antigamente atribuído a Paulo, é praticamente desconhecido. O fundo é paulino, mas a forma é de um autor com melhor domínio do grego clássico, de origem africana. Talvez Apolo, o culto alexandrino, companheiro e colaborador de Paulo (At 18, 24).

O ALICERCE: Porque a fé é o alicerce dos fatos que se esperam, a prova das [coisas] que não são vistas (11). Est autem fides sperandorum substantia rerum argumentum non parentum. ALICERCE [ypostasis<5287>=substantia], segundo o dicionário é o fundamento ou infraestrutura que serve de base a um edifício. Em sentido não material é a realidade, o fato que garante uma ideia ou opinião, dando a esta uma firmeza e segurança. A tradução latina de substantia indica essência, natureza, bens ou patrimônio e matéria de que está feita uma coisa. Ou seja, indica uma realidade como oposta a uma imagem, visão, ou utopia. Vejamos as diversas traduções: garantia (Nácar Colunga), certeza (RA), fundamento (CEI), modo de possuir desde agora (TEB), substance (KJV), substantiation [=comprovação] (Green literal). É uma definição empírica e em função das coisas que se esperam, não uma definição estritamente teológica. É a resposta de por que esperamos e  de que coisas esperamos. Porque existem bens ainda não possuídos que excitam nossos desejos e quem agora os propõe é a fé, em cujo crédito colocamos nossa esperança. Em lugar paralelo da mesma epístola, a tradução é confiança, ou firmeza, ou estabilidade (Hb 2, 14). PROVA [elegchos<1650>=argumentum] é a prova, evidência, que se transforma em convicção fora de toda dúvida. Também tem o sentido de refutação em 2 Tm 3, 16: toda a Escritura é inspirada e útil para o ensino, para a refutação. Aqui logicamente é prova como indica o argumentum latino, que até pode ser traduzido por evidência, ou indício sólido. A fé é a prova de realidades que não podemos ver. Evidentemente que são as realidades de ultra tumba, ou celestes como as chama Paulo. E não só a prova, mas a garantia de que serão nossas, se nessa fé perseveramos.

OS ANTEPASSADOS: Nela foram testemunhas os anciãos (2).. In hac enim testimonium consecuti sunt senes. O autor agora traz uma série de experiências, consignadas pelos escritos sagrados, de como a fé foi parte essencial da vida dos antigos patriarcas, que, por isso, receberam as bênçãos do céu. Essas vidas acrescentam testemunhalmente o valor da fé, em comparação com os sacrifícios do templo, aos quais tão devotos se mostravam os primitivos cristãos provindos dos judeus. Os antigos, desde Abel, [que não sai neste trecho epistolar] todos eles viveram da fé e pela fé na palavra de Deus. Essa fé foi a que fez grandes ante Deus e ante a verdadeira história, os homens do AT. Vejamos os diversos exemplos.

ABRAÃO: Pela fé chamado, Abraão obedeceu, para sair ao lugar que devia receber como herança e saiu sem saber onde ir (8). Fide qui vocatur Abraham oboedivit in locum exire quem accepturus erat in hereditatem et exiit nesciens quo iret. Nos versículos 4-7 o autor fala dos dois exemplos mais conhecidos: Abel e Noé. Eram fatos que não entravam dentro da história propriamente dita. Mas com Abraão já podemos falar de fatos históricos, da voz de Deus e da obediência básica do homem que é acreditar na palavra divina, como verdade acima de sua verdade  e viver assim sua fé, na mesma. Abraão é por excelência o homem da fé: Em três momentos de sua vida a fé mudou seu modo de existência: ao abandonar sua terra; ao receber o anúncio de que em sua velhice teria um filho; e ao obedecer o terrível mandato de sacrificar esse mesmo filho. O resumo de hoje se inicia no capítulo 12 do Gênesis. Neste versículo temos o início da vida de fé de Abraão. Sua saída da terra dos ancestrais em forma de obediência ao chamado de Deus, feita como resposta fiel, que era a emunah<0530>, fidelidade mais do que fé.

FRUTOS DA FÉ: Pela se estabeleceu na terra da promissão como estrangeiro, em tendas habitando junto com Isaac e Jacó os co-herdeiros dessa mesma promessa (9). Fide moratus est in terra repromissionis tamquam in aliena in casulis habitando cum Isaac et Iacob coheredibus repromissionis eiusdem.[pistis<4102>=fides] pistis é a tradução de emunah [=fidelidade] e às vezes de emeth <0571>[=verdade] ou amanah <0548> [=certo, como adjetivo e pacto como substantivo]. A fé [pistis] grega é fidelidade; e, em sentido religioso, a convicção de uma verdade religiosa [belief inglês, ou crença em português]. Para Paulo a fé toma características próprias, ao ser uma confissão no messiado de Cristo e principalmente, na crença em sua ressurreição e consequentemente, na sua primazia sobre todo poder e sabedoria, de modo a ser o Salvador a quem devemos a honra, que no AT era atribuída à Jahveh. É o Messias e o Senhor, ou se queremos como Tomé, nosso Deus e nosso Senhor (Jo 20, 28). PROMISSÃO [epaggelia <1860>=repromissio] anúncio, proclamação, declaração e promessa. Com este último significado temos a única vez que sai nos evangelhos, das 53 do NT, em Lc 24, 49: Eis que envio sobre vós a promessa [epaggelian, promissum] de meu Pai. A promessa constitui o fio condutor de toda a história da salvação que se desenvolve até ver cumprida a mesma em Jesus, o Cristo. No AT a promessa tem o nome de bênção, aliança, juramento. Inicia-se em Gn 3,15 para continuar em Abraão e seus descendentes (Gn 13, 15-17), de modo especial ao afirmar Jahveh: Tu serás uma bênção. Promessa que tem nome apropriado nos evangelhos, especialmente em Lc 1,54-55: Amparou a Israel seu servo… a favor de Abraão e de sua descendência para sempre como prometera aos nossos pais.

A CIDADE: Pois aguardava a cidade que tem fundamentos da que é artífice e fundador Deus (10). Expectabat enim fundamenta habentem civitatem cuius artifex et conditor Deus. Em oposição às tendas que eram habitáculos facilmente desmontáveis, os antigos patriarcas esperavam pela Jerusalém celeste, a cidade que tem alicerces firmes e da qual Deus é o edificador e fundador como lemos em Ap 21, 14. É precisamente a casa do Meu Pai como dirá Jesus (Jo 14, 2) onde há suficientes moradas que Jesus preparou para seus fiéis.

SARA: Também por esa fé, Sara recebeu vigor para conceber sêmen e, fora do tempo da idade, deu à luz, após confiante, acreditar ao prometido (11). Fide et ipsa Sarra sterilis virtutem in conceptionem seminis accepit e. tiam praeter tempus aetatis quoniam fidelem credidit esse qui promiserat. O texto refere-se ao trecho do Gênesis 18, 9-15, quando o Senhor prometeu um filho a Sara, mulher já velha de Abraão. De fato, o texto do Gênesis não é tão claro enquanto a fé de Sara, que inicialmente riu no seu interior, como incrédula, ao ouvir a profecia. Mas que, ao ser repreendida, mudou de opinião como diz Gn 21, 6 e aprendeu de novo a rir, ou seja, a alegrar-se com a esperança de um filho.

A DESCENDÊNCIA: Por isso, também por um nasceram -e esses dum morto– como os astros do céu em multidão e como areia junto da praia do mar, inumerável (12). Propter quod et ab uno orti sunt et haec e mortuo tamquam sidera caeli in multitudinem et sicut harena quae est ad oram maris innumerabilis. Neste versículo temos um comentário do que aconteceu com Sara e Abraão. Este é considerado como morto devido à sua idade, de modo que o sêmen, o homúnculo como se dizia na época, já não existia para a procriação. Daí a expressão de um morto. A descendência de Abraão foi como os grãos de areia do mar: inumerável.

COMO PEREGRINOS: Em conformidade com a fé, morreram todos eles, não recebendo as promessas; pelo contrário, vendo-as de longe  e confiantes e abraçando e confessando, porque eram peregrinos e estrangeiros sobre a terra (13). Iuxta fidem defuncti sunt omnes isti non acceptis repromissionibus sed a longe eas aspicientes et salutantes et confitentes quia peregrini et hospites sunt supra terram. O autor comenta, em favor da fé, fatos do AT. Como peregrinos, no sentido romano da palavra, ou seja, como estrangeiros em terra estranha, não receberam as promessas que apontam a uma pátria definitiva que seria a terra prometida [a tua descendência darei eu esta terra (Gn 12, 7)]. Pois Abraão morreu muitos anos antes de que a terra de Canaã fosse a pátria dos seus descendentes. Uma outra opinião é a que opõe a terra onde moraram os hebreus a uma outra, não terrestre, mas celestial, e que unicamente é atingida em esperança, como vista de longe.

A PÁTRIA: Porque os que tais dizem manifestam que buscam a pátria (14). Qui enim haec dicunt significant se patriam inquirere. A pátria é o céu, quer seja porque do céu procede a alma e ao céu volta, ou porque consideram que a terra é lugar de passagem e a definitiva é a morada que Jesus preparou para seus seguidores (Jo 14, 2). Outros pensam em que essa pátria está perto do paraíso do início do Gênesis, de onde foram expulsos os primeiros pais, devido ao pecado original. Era Ur dos caldeus. Coisa que é confirmada ao parecer no versículo seguinte.

LEMBRANÇAS: Pois já que se dela se lembrassem após dela ter saído, teriam oportunidade de voltar (15). Et si quidem illius meminissent de qua exierunt habebant utique tempus revertendi.A que se refere esse versículo? Há quem diz que essa pátria era a antiga Ur na Caldeia de onde saiu Abraão (Gn 11, 31). Esta conclusão parece ser a apropriada, considerando o versículo seguinte, em que pela fé se procura a pátria celeste em oposição à terrena, que no caso deveria ser Ur. Há uma outra possibilidade de que a pátria terrena seja o antigo paraíso e assim poderemos continuar com nossa alegoria da verdadeira pátria que não conseguimos ver a não ser pela esperança que a fé nos dá.

DEUS PREPAROU UMA CIDADE: Mas agora melhor desejam, isto é celeste, portanto não se envergonha deles o Deus, de ser chamado Deus deles; pois preparou-lhes uma cidade (16). Nunc autem meliorem appetunt id est caelestem ideo non confunditur Deus vocari Deus eorum paravit enim illis civitatem. Continuando com Abraão e sua fé, o autor passa da pátria terrena à celeste. Também podemos ver nestas palavras a terra da Palestina, que foi dada aos hebreus e dentro da mesma o único lugar em que Jahveh Deus foi adorado: a cidade de Jerusalém. Caso seja isto verdade, a carta deveria estar escrita antes da ruína de Jerusalém no ano 70. Porém, parece que a palavra celeste, sobre o céu [epouranios<2032>=caelestis], o mesmo adjetivo que distingue o Pai, segundo Mt 18, 35, está indicando uma pátria superior à da terrestre, pois esta seria epigeos[<1919>= terrestris] como distingue Paulo em 1 Cor 15, 40. Aqui termina esta reflexão e começa de novo uma outra sobre um ato de fé, daquele que acreditou contra toda esperança (Rm 4, 18), ou seja, Abraão.

ISAAC: Pela fé ofereceu Abrão a Isaac sendo tentado, e oferecia o primogênito, o recebido pelas promessas (17). Fide obtulit Abraham Isaac cum temptaretur et unigenitum offerebat qui susceperat repromissiones. A quem foi dito que em Isaac será chamado teu sêmen (18). Ad quem dictum est quia in Isaac vocabitur tibi semen. TENTADO [peirazomenos<3985>=cum temptaretur] melhor se traduzimos como provado, assim como foi Jesus pelo diabo no deserto (Mt 4, 1) verbo usado também na mesma situação por Mc 1, 13 e Lc 4, 2. Esse filho, que era o das promessas, foi oferecido como sacrifício por Abraão no monte da terra de Moriá, e no momento em que a faca estava a degolar Isaac o anjo deteve o braço (Gn cap 22). Essa fé em Deus foi tanto mais forte quanto a esperança de Abraão estava toda ela baseada em Isaac, na sua descendência.

FÉ NA RESURREIÇÃO: Estimando que também dentre os mortos suscitar poderoso era (o) Deus, por isso o recebeu em parábola (19). Arbitrans quia et a mortuis suscitare potens est Deus unde eum et in parabola accepit. Porém a fé do patriarca tinha um fundamento sólido: Deus poderia ressuscitar dentre os mortos o filho sacrificado, pois era poderoso para o fazer. Por isso o recebeu em PARÁBOLA: Esta frase merece uma explicação. PARÁBOLA [parabolë <3850> =parabola] materialmente, significa colocar uma coisa ao lado de outra, como quando dois barcos lutam na abordagem. Metaforicamente, é comparação, exemplo, narrativa fictícia e até um provérbio usado como termo de comparação. Vejamos primeiro as diversas traduções: Por isso, o recuperou também em figura (Nácar Colunga). Por isso, numa espécie de prefiguração, ele recuperou o filho (TEB). De onde também figuradamente o recobrou (RA). Isso é um símbolo para nós (Esp). Por isso o recebes também tu como um símbolo (It). Seria o mesmo caso que em 9, 9 em que a construção do templo antigo e a conduta do sumo sacerdote era um exemplo [parabolë] para a época presente. Logo a recuperação de Isaac da morte, por intervenção divina, era um modelo do que aconteceria com Cristo, primogênito também, salvo da morte por desígnio e intervenção do Pai, após o sacrifício da cruz.

Evangelho ( Lc 12, 32-48)

ADVERTÊNCIAS DO SENHOR

(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: O evangelho deste domingo tem três exortações  diferentes, precedidas de um estímulo inicial: Não temas, (tu) ó pequeno rebanho! (sic) Vamos explicar, ponto por ponto, as diversas partes do mesmo.

1A PARTE: ESTÍMULO INICIAL

NÃO  TEMAS: Não temas, ó pequeno rebanho! Porque vosso Pai se agradou em dar-vos o Reino (32). Nolite timere pusillus grex quia conplacuit Patri vestro dare vobis regnum. Com as mesmas palavras [não temas] dirige-se Gabriel, o arcanjo, a Zacarias (Lc 1, 13) e a Maria (1, 30) ao anunciar uma boa-nova, tanto a um como a outra; ou seja, anuncia o evangelho particular de ambos. Sem dúvida, que aqui, Jesus se dirige a seus doze discípulos (12, 22), com uma notícia que é de esperança para eles: porque foi do agrado do vosso Pai dar-vos o Reino (32). Que significam estas palavras? Teremos que compará-las com Lc 22, 28-30: porque permanecestes constantemente comigo em minhas tentações; também eu disponho para vós o Reino, como meu Pai o dispôs para mim, a fim de que comais e bebais à minha mesa em meu Reino, e vos senteis em tronos para julgar as doze tribos de Israel. O ambiente em que Jesus pronuncia as primeiras palavras é de preocupação, porque o mesmo Jesus viu-se obrigado a ir furtivamente a Jerusalém; já que, como diz Marcos, nessa subida, os discípulos estavam assustados e acompanhavam-no com medo (10,32); ou como narra João, Jesus percorria a Galileia, não podendo circular pela Judeia, porque os judeus o queriam matar. E por isso subiu para a festa, não publicamente, mas às ocultas (ver Jo 7,1-14). Que tipo de reino era esse que o Pai complacentemente iria entregar? Era um convite da mais alta confiança: seriam os convivas no banquete, ou seja, nas delícias da nova escolha do povo, que tinha origem em Jesus, como seu rebanho do qual ele era pastor e rei. Mas dentro das estruturas do Reino, eles deveriam ser os juízes para julgar os que não quiseram entrar e impediram outros de entrarem dentro de sua organização. Jesus promete uma distinção especial que é como entregar os mais cobiçados cargos àqueles que tinham compartilhado das tribulações de Jesus durante sua vida. Outros identificam o julgar com o reinar como foi o caso do livro dos Juízes e assim se compreende melhor o porquê dos doze tronos, próprios dos que reinam e não das cadeiras judiciais. Podemos supor que ambas as opiniões podem entrar: os apóstolos reinarão e julgarão os seus conterrâneos acompanhando o soberano principal a quem o Pai deu o Reino, o poder, e que ele quer compartilhar com seus discípulos, assim como estes compartiram com ele suas adversidades e tribulações. O poder real e o domínio sobre todos os reinos debaixo do céu serão entregues ao povo dos santos do Altíssimo (Dn 7, 27). O pior é que os apóstolos entendem estas palavras de um modo material e estrito que não é precisamente o que Jesus queria deles.

VENDEI VOSSAS PROPRIEDADES: Vendei as vossas possessões e dai esmola; fazei para vós bolsas que não envelhecem um tesouro inextinguível será vosso nos céus onde ladrão não chega nem traça corrompe (33). Vendite quae possidetis et date elemosynam facite vobis sacculos qui non veterescunt thesaurum non deficientem in caelis quo fur non adpropiat neque tinea corrumpit POSSESSÕES: O grego diz literalmente as coisas sobre as quais tendes propriedade. Forma parte do primeiro conselho-mandato de Jesus nesta ocasião. Sem dúvida que uma das preocupações dos discípulos era como manter suas famílias e até a si mesmos sem ter uma base material. Jesus, de novo, dá uma lição de confiança na providência divina que cuidará de modo especial daqueles que dedicaram suas posses à ajuda dos mais necessitados. Quando Pedro pergunta que receberiam eles que tinham deixado seus bens para segui-lo, Jesus responde que receberão muito mais no tempo da vida presente e, além disso, a vida eterna (Lc 18,28-30). Marcos dirá que esse muito mais será cem vezes mais; Mateus, contrariamente ao que Lucas e Marcos narram, restringe a resposta de Jesus aos doze e, portanto afirmará que assentar-se-ão em doze tronos para governar as doze tribos de Israel. Feita esta digressão, observamos como Lucas, no trecho de hoje, aproveita uma lição, aparentemente particular, para estender o ensino à generalidade dos discípulos de Cristo. O melhor que podem fazer é segui-lo, deixando toda propriedade; porque dando seus bens aos pobres terão bolsas que não envelhecem, um tesouro que não falha nos céus, onde ladrão não se aproxima nem traça corrompe (23). Evidentemente que se trata de tesouros em forma de grãos ou mercadorias perecíveis. É a mesma advertência que Mateus recolhe no sermão da montanha: Não ajuntar tesouros [no sentido explicado de depósito ou armazém] onde a traça e a ferrugem os corroem. E os ladrões arrombam e roubam (Mt 6, 19-20). O que era uma exigência para os doze, se transforma agora numa séria advertência para os que querem ser verdadeiros discípulos.

ONDE ESTÁ TEU TESOURO: Porque onde está vosso tesouro aí também estará vosso coração (34). Ubi enim thesaurus vester est ibi et cor vestrum erit. Entendemos por tesouro um amontoado tanto de metais ou coisas preciosas como de mercancias, como trigo, frutos, salgados etc. Parece que Jesus cita um provérbio que não é precisamente religioso, nem muito menos evangélico, e que seria patrimônio de todas as culturas. Um único comentário: podemos substituir o coração por mente ou desejo. O coração do homem, ou seja, a imagem que representa a soma de suas energias e desejos, está sempre concentrado nas coisas que ele pensa serem  primárias em sua vida.

2A PARTE: A VIGILÂNCIA

A VINDA DO FILHO DO HOMEM: Estejam vossos lombos cingidos e as candeias acesas (35). Sint lumbi vestri praecincti et lucernae ardentes. Também vós semelhantes a homens que esperam pelo seu senhor quando voltar da festa, para que vindo e bater, imediatamente lhe abram (36). Et vos similes hominibus expectantibus dominum suum quando revertatur a nuptiis ut cum venerit et pulsaverit confestim aperiant ei. Sob este título da vinda do Filho do homem, podemos interpretar os parágrafos seguintes que constituem a segunda parte do discurso de Jesus. Com imagens aparentemente de extrema urgência, Jesus descreve a preparação para o fim escatológico que narra como iminente.  Podemos pensar que a escatologia não é uma vinda estrondosa ou espetacular, porque o Reino já está no meio de vós (Lc 17, 21). Alguns comentaristas falam da crise que viria no momento de paixão e morte de Jesus. É por isso que ele pede no horto das oliveiras: Orai para não entrardes em tentação (Lc 22, 40), que em Mateus e Marcos se completa com vigiai e orai para que não entreis em tentação, pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca (Mt 26,41 e Mc 14, 38). Toda tribulação exige preparação que Jesus descreve com as imagens de cingir os quadris  e ter as lamparinas [luzes] acessas. Jesus emprega duas imagens para descrever, não tanto a incerteza do evento como a preparação em termos de vigília dos servidores. Como as túnicas dos orientais eram longas, como se fossem vestidos talares [até os calcanhares] eles as recolhiam, dobrando-as no cinto que cingia seus lombos (1 Rs 18, 46). Devemos distinguir também entre lampas [tocha] que usavam as virgens acompanhantes do esposo e lyxnoi [candeias ou lamparinas] que iluminavam as casas. Estas últimas são as que devem permanecer acesas, esperando a volta do dono de uma festa, pois gamoi em plural, não designa casamento, mas festa em geral; para que ao bater o dono, a porta lhe seja aberta de imediato.

.

BEMAVENTURADOS: Ditosos os escravos, aqueles os quais vindo o Senhor, encontrar vigilantes. Em verdade vos digo que se cingirá e os reclinará e, passando entre eles, os servirá (37). Na realidade os servos não fizeram nada mais, além de cumprir seu dever; mas o dono os recompensa de um modo completamente insólito. Ele se torna escravo e os serve à mesa. É o tipo de exageração que ressalta o bem conseguido pela conduta impecável dos servos ao esperar, vigilantes, o seu dono. O caso se torna mais compreensível, caso seja Deus o dono.

AS VIGÍLIAS: E se vier na segunda vigília e na terceira vigília vier e encontrar dessa forma, ditosos são os escravos aqueles (38). Et si venerit in secunda vigilia et si in tertia vigilia venerit et ita invenerit beati sunt servi illi. No cômputo judeu, a noite estava dividida em três vigílias de quatro horas cada uma.  A parábola ou exemplo diz, pois, que devemos estar vigilantes como se fosse dia a noite inteira, pois a primeira vigília, é lógico que não sirva para dormir, mas com a terceira completamos a noite como se fosse um dia de trabalho, neste caso de espera. Não importa a hora, o que é preciso é estar despertos para que o dono não encontre os servos dormidos.

O LADRÃO: Isto, pois, sabei, que se o dono da casa conhecesse qual a hora, em que o ladrão havia de vir, vigiaria e não deixaria furar a sua casa (39). hoc autem scitote quia si sciret pater familias qua hora fur veniret vigilaret utique et non sineret perfodiri domum suam. Um outro exemplo para recalcar a necessidade de estar vigilantes e preparados: se o dono da casa soubesse o momento exato em que o ladrão escolhesse para entrar furtivamente, ele vigiaria e não deixaria que sua casa fosse furada. Alude Lucas ao modo de construir as casas, de adobe, de modo que era mais fácil penetrar nelas através de um buraco nas paredes que arrombando a porta das mesmas.

O FILHO DO HOMEM: Também pois vós ficai preparados porque na hora em que não pensais o Filho do Homem vem (40). Et vos estote parati quia qua hora non putatis Filius hominis venit. Parece um acréscimo sem sentido esta alusão. É talvez uma redação reflexiva de Lucas, preocupado com o problema escatológico da vinda do Senhor. Ele traz a observação como um parêntese surgido ao narrar os fatos do evangelho. É curioso que o problema do Reino, que enche grande parte das parábolas e ditos de Jesus nos sinóticos, só aparece em duas ocasiões em João: como explicação a Nicodemos sobre o nascer de novo para entrar no reino e como resposta a Pilatos que pergunta se ele é rei. O problema da vinda triunfante do Senhor era crucial nos primeiros tempos do cristianismo, como vemos na carta primeira aos Tessalonicenses, escrita no verão do ano 50. Essa expectativa está presente em todo este trecho de Lucas em que o Senhor Jesus chama a si mesmo Filho do Homem que aparece em Lucas 24 vezes e sempre com artigo: o Filho do Homem. Precisamente é o artigo  que o distingue de um ser humano comum para entrar na escatologia; pois é o Jesus que representa o reino divino como chefe e soberano do mesmo, segundo Daniel 7,13-14. É o Jesus da resposta ao Sumo Sacerdote Kaifás: O Filho do Homem sentado à  direita do poder de Deus (Lc 22, 69) e vindo sobre as nuvens do céu (Mt 26, 64). Deste modo, este segundo trecho está relacionado com a expectativa escatológica dos primeiros cristãos. A questão da vigilância é comum com o discurso escatológico da ruína de Jerusalém (Lc 21, 34-36). Esta passagem tem seus duplicados em Mc 13, 33-37 e Mateus 24, 37-44.

3A PARTE: O ADMINISTRADOR FIEL.

A PERGUNTA DE PEDRO: Então lhe disse Pedro: Senhor, dizes esta parábola para nós ou também para todos? (41). Ait autem ei Petrus Domine ad nos dicis hanc parabolam an et ad omnes? A parábola é para nós ou para todos? Pedro era o porta-voz dos doze e, por isso, ele pergunta se o ensinado por Jesus em forma de exemplo, é só para eles, os doze, ou para toda a multidão dos quais se consideravam como discípulos. Jesus não responde diretamente à pergunta, mas indiretamente dá uma lição de conduta para todos os que têm na comunidade um cargo de autoridade, de mandato, que deve se transformar em serviço. Todos são administradores com responsabilidade e é sobre como deve ser dirigida e exercitada essa responsabilidade que Jesus narra a seguinte parábola com três tipos diferentes de escravos em postos de responsabilidade.

PRIMEIRO TIPO DE ESCRAVOS: Disse-lhe, pois, o Senhor: Quem, portanto é o fiel mordomo e prudente o qual constituirá o Senhor sobre seu serviço para dar no tempo oportuno a porção de trigo? (42). dixit autem Dominus quis putas est fidelis dispensator et prudens quem constituet dominus super familiam suam ut det illis in tempore tritici mensuram. Ditoso o escravo aquele que vindo o Senhor encontrar fazendo isso (43). Beatus ille servus quem cum venerit dominus invenerit ita facientem. Em verdade vos digo que o constituirá sobre todas as suas posses (44). vere dico vobis quia supra omnia quae possidet constituet illum. MORDOMO [oikonomos<3623>=dispensator] É o mordomo responsável de modo que não exista roubo nem dolo e ao mesmo tempo sábio, inteligente, de forma que saiba distinguir entre o necessário e o puramente acidental, entre o que deve ser feito para gastar e guardar o patrimônio, para o serviço da casa [therapeia<2322>=familia] como diz Lucas, pois o principal era o cuidado de dar no tempo a refeição de pão necessária [ração de trigo no original]. A VOLTA DO DONO: Parece que Jesus está pensando numa ausência e que satisfatoriamente o dono encontra tudo como tinha planejado. Por isso o abençoa e o recompensa como administrador total de suas posses.

SEGUNDO TIPO: Mas se disser o escravo esse consigo mesmo: Demora meu dono em vir. E começa a bater nos criados e criadas, a comer e beber e se inebriar (45). Quod si dixerit servus ille in corde suo moram facit dominus meus venire et coeperit percutere pueros et ancillas et edere et bibere et inebriari. Virá o dono desse escravo no dia em que não espera e na hora que não conhece. E o cortará em dois e a sorte dele porá com os infiéis (46). Veniet dominus servi illius in die qua non sperat et hora qua nescit et dividet eum partemque eius cum infidelibus ponet. O servo irresponsável. Agora Lucas emprega a palavra certa: doulos, escravo, pois, no tempo de Jesus, eram os escravos domésticos os que se encarregavam da administração das casas ricas. Agora o escravo do modelo tem uma conduta que podemos chamar de irresponsável, pois primeiro pensa que seu dono demorará na volta e logo começa a atuar como dono real, batendo nos escravos e escravas e desfrutando da vida, comendo, bebendo e embriagando-se. Parece uma descrição do que era, na época, a vida dos ricos. O resultado de semelhante conduta não pode ser mais desastroso. Virá o dono desse escravo no dia não esperado e na hora que é desconhecida e o partirá em dois (sic) e o colocará entre os que não merecem confiança. Logicamente partir em dois deve ter um significado metafórico, não real, porque logo está vivo como para poder ser colocado entre os servos que não merecem confiança. Ou seja, o tratará como um escravo fugitivo.

TERCEIRO TIPO: Porém, aquele escravo que conhecendo a vontade do seu dono e não se preparou nem fez conforme a vontade dele, será espancado muitas vezes (47). Ille autem servus qui cognovit voluntatem domini sui et non praeparavit et non fecit secundum voluntatem eius vapulabit multas. Jesus descreve a conduta daqueles que conhecem a vontade do dono, mas nem se preparam [para recebê-lo] nem a cumprem, receberão como castigo uma boa surra de paus. Era o castigo comum na época para os escravos cuja conduta desagradava o dono.

ÚLTIMO TIPO DE CONDUTA REPROVÁVEL: Aquele, pois, que não conhece a vontade do dono, mas faz coisas que merecem  golpes,  será golpeado poucas (vezes). A todo, pois, que muito foi dado muito será exigido dele; e ao que muito lhe foi oferecido [apresentado] mais se pedirá dele (48). Qui autem non cognovit et fecit digna plagis vapulabit paucis omni autem cui multum datum est multum quaeretur ab eo et cui commendaverunt multum plus petent ab eo. O grego termina com o adjetivo poucas ao qual devemos logicamente acrescentar o nome que aqui parece mais apropriado, vezes ou golpes.  MORAL DA HISTÓRIA: Deus dá de graça seus dons [o foi dado tem como sujeito ativo Deus, sendo, pois, uma passiva impessoal]; mas não quer que estejamos preguiçosos sem nada fazer. Por isso, termina dizendo que a exigência depende da abundância do dom recebido.

PISTAS: 1) É de destacar a insistência de Lucas e de sua comunidade na esmola como meio de vida cristã. Existem duas maneiras de viver em radicalidade, por não dizer totalidade, o evangelho: renunciar aos bens terrenos, ou repartir com os necessitados as riquezas de que somos administradores e não donos absolutos. A segunda parte pode ser tomada como uma adaptação do evangelho aos dirigentes das comunidades em que devia existir uma administração de bens comuns, como narram os Atos 4, 34-35. Porém, se pensamos que Deus está presente como dono de tudo, também a segunda parte está intimamente unida à primeira, de modo que o dinheiro será o teste para saber quem é melhor administrador e como ele será considerado pelo dono absoluto que é Deus. O dinheiro é apontado como teste de nossa honradez e fiabilidade para com Deus.

2) O nosso tesouro é o amor em nossos corações, que é o maior fruto do Espírito (Gl 5, 22). No caso das riquezas materiais, o amor nos impele a seguir o exemplo de Zaqueu: Dar a metade aos pobres. Isso pelo menos deve ser feito com o chamado supérfluo de nossos bens. Melhor: todo o supérfluo como diz Tobias (4, 16) pertence aos pobres. Por isso uma norma que pode ser exigida na atualidade é que gastemos tanto em esmola como gastamos em diversões. Isso não nos torna mais pobres e torna mais ricos os pobres.

3) A exortação à vigilância é hoje uma exortação a uma vida austera e simples. Não temos uma ameaça de destruição como era a de Jerusalém; porém temos uma ameaça que está num futuro próximo: a do meio-ambiente. Se não sabemos ser austeros em nossas vidas e dilapidamos o que temos, que poderão herdar os futuros habitantes da terra?

4) A última parte do evangelho é, segundo muitos, uma referência ao purgatório. Não é a fé que determina o prêmio ou o castigo; mas a fidelidade à vontade do Senhor. Especialmente se consideramos que o dono é uma figura representativa do próprio Deus.

 

Facebook
Twitter
LinkedIn

Biblioteca Presbíteros