Comentário Exegético – XXIII Domingo do Tempo Comum – Ano B

XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM

EPISTOLA (TIAGO 2, 1-5)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Escrita pelo apóstolo Tiago [Jacob] que era chamado o Justo e declarado irmão [parente] do Senhor [Jesus], está dirigida às doze tribos que se encontram na Dispersão ou Diáspora (1.1). É, pois, escrita para os judeus convertidos que moravam fora da Palestina. Daí que o texto está em grego e seja um dos mais clássicos dentro da Koiné do NT. No trecho de hoje aborda o tema da acepção de pessoas. Tem como base última o mandamento do amor. Não é próprio de um cristão ter medidas diferentes na hora do trato com a comunidade: adular o rico e ignorar o pobre. Essa conduta seria a mesma que instigar o rico a ser como o fariseu da parábola: um desprezador e opressor do pobre.

FAVORITISMO: Meus irmãos: não tenhais em favoritismo a fé do nosso Senhor Jesus Cristo da glória [glorioso] (1). Fratres mei nolite in personarum acceptione habere fidem Domini nostri Iesu Christi gloriae. FAVORITISMO [prosöpolëpsia<4382>=personarum acceptio] de significado acepção de pessoas, ou favorecer a uns mais do que a outros por medo ou por desejo de aceitar favores. Paulo usa esta palavra para afirmar que para com Deus, não há acepção de pessoas (Rm 2, 11), pois trata por igual tanto a judeus como a gregos. Do próprio Jesus, até os inimigos confessaram: Mestre, sabemos que és verdadeiro e que não te deixas influenciar por ninguém. Pois não julgas as pessoas pela aparência, mas ensinas com fidelidade o caminho de Deus (Mc 12, 14). Na casa de Cornélio, gentil, Pedro falou-lhes assim: Agora compreendo verdadeiramente que Deus não faz distinção de pessoas (At 10, 34). Pelo que Tiago diz em seguida, deduzimos que a acepção de pessoas é tratar melhor os ricos do que os pobres. A tradução moderna seria: Não mistureis com favoritismos a fé de nosso Senhor Jesus Cristo glorificado. A tradução literal é um tanto confusa, e no lugar de glorificado ou glorioso fala da glória. Estamos talvez num momento de celebração do dia do Senhor, domingo, como era denominado e no qual se celebrava a ressurreição de Cristo como liturgia.

EXEMPLO: Se, pois, entrar na vossa assembleia um homem com anel de ouro em seus dedos, de vestido esplêndido; mas também um pobre em veste suja (2) e olhardes respeitosamente ao vestido com roupa fina e lhe disserdes: assenta-te aqui confortavelmente. E ao pobre disserdes: fica de pé ai ou senta ai, embaixo do estrado dos meus pés (3). Etenim si introierit in conventu vestro vir aureum anulum habens in veste candida introierit autem et pauper in sordido habitu. et intendatis in eum qui indutus est veste praeclara et dixeritis tu sede hic bene pauperi autem dicatis tu sta illic aut sede sub scabillo pedum meorum. ANEL DE OURO [chrysodaktulios <5554>=aureum anulus habent]: indicava que o homem era rico. Na sociedade de Roma os ricos levavam anéis na mão esquerda com profusão. Sinal de riqueza, os anéis eram mostrados com ostentação, e até podiam ser alugados por tempo e preço determinados. ASSEMBLEIA [synagögë <4864>= conventum] se trata de uma reunião para fazer justiça. Maimônides diz que foi expressamente mandado pelas leis judaicas que, quando um homem pobre e um rico pleiteassem, o rico não devia ser convidado a sentar-se e o pobre a ficar de pé, ou sentar-se num plano inferior, mas ambos deviam estar sentados ou de pé num mesmo plano.

DISTINÇÃO IMORAL: Não fizestes distinção dentro de vós mesmos e vos tornastes juízes de suspeitas maldosas? (4). Nonne iudicatis apud vosmetipsos et facti estis iudices cogitationum iniquarum. DISTINÇÃO [diekrithëte<1252>= iudicatis] diakrinö é separar, fazer distinção, discriminar, preferir. Ao julgar mais digno o rico que o pobre desprezamos o último por sua externa aparência e nos tornamos juízes, reprovando o pobre só pela aparência quando o que interessa é o interior. Por isso adverte Jahveh em 1 Sm 16, 7 sobre a eleição de Davi contrariamente à escolha de seus irmãos: Não julgues pela sua boa aparência e pela sua estatura elevada, porque não foi esse que eu escolhi. Eu não julgo pelas aparências como vocês. Julgo pelo coração. Julgar pelo anel e o vestido é tomar as aparências como verdades certas; e recriminar pela pobreza exterior é uma maldosa prevenção. Sem dúvida que Tiago tem em mente este escrito de Gn 6, 5: E viu o SENHOR que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só maldade, continuamente.

DEUS ESCOLHEU OS POBRES: Atendei irmãos meus amados: não escolheu o Deus os pobres deste mundo, ricos em fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam? (5). Audite fratres mei dilectissimi nonne Deus elegit pauperes in hoc mundo divites in fide et heredes regni quod repromisit Deus diligentibus se. O apóstolo está ciente da bem-aventurança de Jesus : Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino de Deus (Lc 6, 20), coisa que Jesus já tinha afirmado na sinagoga de Nazaré, dizendo: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me tem ungido. Enviado-me a levar a boa nova aos pobres, a anunciar a liberdade aos presos, a dar a vista aos cegos, a liberar os oprimidos (Lc 4, 18). Como a entrada no Reino acontece através da fé, daí que Tiago diz que os pobres eram ricos em fé ao mesmo tempo herdeiros do Reino, comparado este com o tesouro escondido (Mt 13, 44) e a pérola de muito valor (Mt 13, 46). Na realidade, os pobres têm um valor último superior a todos os que um rico pode obter neste mundo. Por isso um bispo dizia a seus sacerdotes: a melhor medida do trato com os vossos paroquianos é tratar os pobres como ricos e os ricos como pobres.

 

 

EVANGELHO (Mc 7, 31-37)

CURA DO SURDO-MUDO

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 

 

EM TERRITÓRIO PAGÃO: E de novo saindo dos confins de Tiro e Sidônia veio ao mar da Galileia no meio da região da Decápolis (31). Et iterum exiens de finibus Tyri venit per Sidonem ad mare Galilaeae inter medios finese herdeiros Decapoleos. Temos escolhido um texto grego que facilita o problema apresentado pelo tradicional de “saindo de Tiro ir para o norte para descer por meio de Sidônia até ao mar e entrar na Decápolis”. O novo texto corrigido só fala de sair dos confins ou território pagão de Tiro e Sidônia. Chama mar da Galileia quando no tempo de Jesus era chamado mar de Tiberíades, como claramente diz o quarto evangelista: Jesus se manifestou de novo aos discípulos no mar de Tiberíades (21, 1). Indica a falta de conhecimento exato de Marcos por não ser nem escrever perto do lugar, DECÁPOLIS [dekapolis <1179>]. Era este um conjunto de 10 cidades localizadas na Transjordânia a exceção de Citópolis [Bet-san do AT] que estava no extremo oriental da planície de Esdrelão ao oeste do Jordão. A população era majoritariamente helenista. Pompeu as transformou em cidades livres, submetidas ao legado da Síria (63 aC) para impedir que fossem tomadas pelos judeus. Entre elas temos os nomes de Pela, Gadara [gadarenos em Mt 8, 28] e Gerasa [gerasenos em Mc 5, 1], como as mais conhecidas. No século III perderam sua independência, sendo administradas pela província da Arábia.

 

SURDO E GAGO: E trazem-lhe um surdo gago e lhe pedem para pôr nele a mão (32). Et adducunt ei surdum et mutum et deprecantur eum ut inponat illi manum. Somente noutra passagem no AT saem juntas as mesmas palavras do evangelho de hoje: SURDO [köfos<2974>=surdus] e GAGO [mogilalos<3424>= mutum]. É Isaías 35, 5-6: São as mesmas palavras heresh [<02795>=köfos] e hilem[<0483 =mogilalos] que usa Marcos na cura de um homem que era surdo e gago, ou que tinha dificuldade em se expressar. Daí que muitos intérpretes optem por um significado simbólico desta passagem, além do natural histórico da mesma. Quem seria o surdo e gago que unicamente sob a direta intervenção de Jesus poderia ter cura? A maioria dos autores se inclina em apontar os discípulos de Jesus, que, pouco antes, são descritos como nada tendo compreendido a respeito dos pães multiplicados; pois o coração deles estava endurecido (Mc 6, 52). Era a mesma incompreensão que Jesus encontrava entre o povo, e por isso falava em parábolas, para que por muito que ouçam não compreendam (Mc 4, 12). No AT a surdez junto com a cegueira eram símbolos da resistência de Israel em escutar o que Jahvé falava pelos profetas. Assim Is 6, 10: “A mente deste povo torna pesados (duros) seus ouvidos e tapa seus olhos de modo que não veja com seus olhos e não ouça com seus ouvidos”. O sentido, pois, simbólico da passagem é que só Jesus pode dar a entender os planos de Deus e dar aos discípulos uma liberdade de linguagem para transmitir os mesmos com toda exatidão e verdade. Porque dos inúmeros casos de cura que Jesus efetuou nessa margem leste e pagã do Jordão e do lago de Tiberíades (ver Mt 15, 29-31), somente este é narrado por Marcos com todo luxo de detalhes.

. MAGIA OU CURA? E tendo-o retirado da multidão, à parte introduziu os seus dedos nos ouvidos dele, cuspiu e tocou a língua delecom saliva (33). Et adprehendens eum de turba seorsum misit digitos suos in auriculas et expuens tetigit linguam eius. A cura de doentes através da imposição das mãos, era admitida pelos rabis da época; porém não se podia usar ritos ou gestos fora da simples imposição das mãos e não era permitido usar outras palavras a não ser as da Escritura, para evitar qualquer superstição ou magia, proibidas pela lei (Lv 3, 2). Os judeus atribuíam uma especial força à imposição das mãos que era obrigatória sobre as vítimas do sacrifício (Lv 1,4) a modo da absolvição dos pecados. Isto nos mostra como a imposição das mãos que a igreja católica usa para o ato penitencial é uma prática que tem sua origem, como tantas outras na tradição judaica. Os judeus pensavam que os pecados pessoais ou dos parentes eram causa de determinadas doenças. Por isso pedem a Jesus que imponha as mãos sobre o surdo-gago. À PARTE: Jesus exigia fé. Como pedir a fé de um homem que nada entendia? Por isso usa gestos que aparentemente poderiam ser tomados como passes mágicos e foi sem dúvida essa a razão que o levou a afastá-lo da multidão. Introduzindo os dedos nos ouvidos, demonstra ao surdo que quer curar sua surdez. A saliva era considerada como uma condensação do espírito. Por isso usa a saliva, que por outra parte na antiguidade era, junto com o vinho e o azeite, remédios usuais, como sinal para declarar que ele quer abrir definitivamente a língua do doente. Sem dúvida que este assim o entendeu.

EFFETHA: E olhando para cima ao céu suspirou e diz-lhe: effetha que é abre-te (34). Et suspiciens in caelum ingemuit et ait illi eppheta quod est adaperire. Jesus olha para o céu, lugar onde estava o Deus dos antigos e lança um suspiro. Quer com isto indicar que ele invoca o poder divino à sua disposição para a cura. Tudo está feito para que a fé no poder de Jesus surta seu efeito e para que o poder que cura o doente seja um poder do alto e não um ato de magia. Pois a fé que o mestre requer não é a fé na cura, mas no poder dele de curar. Então pronuncia a palavra EFFETAH, Abri-os totalmente.

A CURA: E imediatamente abriram-se os ouvidos dele e foi solta a atadura da sua língua e falava corretamente (35). Et statim apertae sunt aures eius et solutum est vinculum linguae eius et loquebatur recte. Entendeu o surdo a voz? Ou talvez a ouviram alguns dos discípulos, escolhidos como os três em Marcos 5, 37? O caso é que o doente ficou curado de imediato. SIMBOLISMO: A Igreja usa os fatos que acompanham a cura para realçar o simbolismo do sacramento do Batismo, que envolve uma realidade invisível. Como no caso de hoje, o batizando é um verdadeiro pagão e o sacerdote, uma vez batizado, entregará a vela acesa, como luz de Cristo que iluminará seus passos e em seguida tocará ouvidos e boca pronunciando a palavra Éfeta, dizendo: “O Senhor que fez os surdos ouvir e os mudos falar, te conceda que possas logo ouvir a sua palavra e professar a fé para louvor e glória de Deus”. Fora de todo simbolismo esta é a realidade afirmada por Paulo como necessária em todo homem de fé em Rm 10, 10: “Crer no próprio coração conduz à justiça e confessar com a boca conduz à salvação”.

O SEGREDO MESSIÂNICO: E mandou-lhes que a ninguém falassem. Mas quanto ele lhes recomendava mais abundantemente anunciavam (36). Et praecepit illis ne cui dicerent quanto autem eis praecipiebat tanto magis plus praedicabant. Aqui entramos na lei do silêncio, tão própria de Marcos, porque Jesus não quer ser tomado como um simples curandeiro, ou como um falso messias. A doutrina era muito mais importante do que a cura temporal dos doentes.

O BEM FEITO: E fora de medida se admiravam dizendo: bem todas as coisas têm feito: e os surdos faz ouvirem e os mudos falarem (37). Et eo amplius admirabantur dicentes bene omnia fecit et surdos facit audire et mutos loqui. E veio ter com ele grandes multidões, que traziam coxos, cegos, mudos, aleijados, e outros muitos, e os puseram aos pés de Jesus, e ele os sarou. De tal sorte, que a multidão se maravilhou vendo os mudos a falar, os aleijados sãos, os coxos a andar, e os cegos a ver; e glorificava o Deus de Israel (Mt 15, 30-31). BEM TUDO TEM FEITO é o comentário das multidões para contrapor a opinião dos escribas e fariseus que atribuíam a Belzebu o poder de expulsar os demônios (Mt 12, 24). Não era o poder do maligno, nem uma ambição humana, mas a compaixão pelas doenças do povo o motivo pelo qual Jesus curava os doentes, motivo que se traduzia no triunfo do bem sobre o mal, claro sinal da vinda do Reino.

PISTAS: 1o) Necessidade de uma cura interior. Não estamos dispostos a escutar a radicalidade do evangelho (a porta é estreita). Nem temos a suficiente ousadia para anunciá-lo num mundo indiferente, descrente e até hostil.

2o) Existe uma disposição humana, que precede e acompanha a ação do Espírito Santo: é a vontade de buscar a verdade e praticar a justiça (no sentido de optar sempre pelo que é bom) de modo a se deixar tocar docilmente pela graça, retirando impedimentos para que o Espírito abra ouvidos e desate línguas em favor da Palavra, ou seja, Jesus.

3o) A mediação de Jesus e sua necessidade: É Ele quem atua; mas sempre em comunhão com o Espírito, enviado por Ele, assim como foi Ele enviado pelo Pai; daí o olhar ao céu (Pai) e o suspiro (Espírito) acompanhando o gesto de suas mãos (corpo) e a saliva de sua boca (seu espírito).

4o) Levou-o à parte; isto é: sem sair do modo de ser e possuir. Circunstancias que acompanham nosso ego, o formam e o deformam, nos impedem de encontrar o verdadeiro sentido do Cristo da cruz (anunciado por Paulo), o que salva -não unicamente cura o corpo- nossas vidas do anonimato da rotina e da mediocridade da vida cômoda.

 

Facebook
Twitter
LinkedIn

Biblioteca Presbíteros