Homilia de D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB – XXVI Domingo do Tempo Comum – Ano B

Meus caros irmãos e irmãs,

No domingo passado refletimos sobre o texto do evangelho de São Marcos, onde os discípulos, após discutirem pelo caminho, sobre qual deles seria o maior, recebem uma instrução especial de Jesus. Tomando uma criança e colocando-a no meio deles, Jesus mostra qual é a atitude verdadeira que seus discípulos devem ter na vida: Ocupar o último lugar e tornar-se servos uns dos outros (cf. Mc 9,30-37). O texto deste domingo é a continuação deste episódio. No caminho, eles não apenas haviam discutido quem seria o maior, mas também tentaram impedir que alguém que não pertencia ao seu grupo realizasse boas ações em nome de Jesus. É João que, representando os demais apóstolos, confessa: “Mestre, vimos alguém que não nos segue, expulsando demônios em teu nome, e o impedimos porque não nos seguia” (Mc 9,38).

Dentro deste contexto, observa-se uma estreita unidade entre a primeira leitura (cf. Nm 11,25-29) com o texto do Evangelho.  Moisés havia se dedicado totalmente ao serviço do seu povo, mas nos últimos anos da sua vida, foi dominado por um certo desânimo, devido aos muitos problemas.  Por isto, certa vez ele se queixou ao Senhor: “Porventura sou eu que concebi esse povo?  Eu sozinho não posso suportar a carga de um povo tão numeroso e indisciplinado” ( Nm 11,10-15).  O Senhor então respondeu a Moisés: “Escolhe 70 homens que estejam em condições de colaborar contigo, sobre eles farei descer o mesmo Espírito que se encontrava em ti” (Nm 11,16-18).  No dia marcado os 70 homens se reuniram na tenda, aonde Deus descia para falar com Moisés, receberam o Espírito e começaram a profetizar; isto é, foram tomados por um estado de exaltação coletiva e falavam em nome de Deus (v. 25).  Dois anciãos do povo, Eldad e Medad, muito embora não tivessem participado da cerimônia, receberam também o Espírito e se tornaram profetas, exatamente como os outros 70.  Diante disto, Josué se indignou e pediu a Moisés para que interviesse a fim de impedi-los de profetizar.  Moisés, cheio de sabedoria e de grande misericórdia, corrigiu a atitude de Josué.

No Evangelho temos algo semelhante, quando João afirma que havia proibido um homem de expulsar demônios em nome de Jesus, ao que o próprio Jesus responde: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor” (Mc 9,39).  João, assim como Josué, está preocupado com aqueles que profetizam ou realizam boas obras fora do grupo dos escolhidos. Moisés e Jesus, no entanto, expressam a liberdade com relação a isso. Se o indivíduo, de fato, foi capaz de realizar um milagre, invocando o nome de Jesus, é porque, de alguma forma, estava em comunhão com ele.  Seria impensável que, logo em seguida, se pusesse a falar mal do Mestre e desmerecer sua obra.  Portanto, podia continuar livremente a fazer o bem em nome dele.

O episódio da incapacidade dos discípulos de curar um homem possuído pelo demônio (cf. Mc 9,17s), narrado no mesmo capítulo, mostra que não é a pertença ao círculo dos discípulos que habilita “expulsar demônios”, mas o dom de Deus e as disposições adequadas para acolher esse dom.

Essa é mais uma atitude que revela o grau de imaturidade em que se encontram os discípulos de Jesus. Eles também já haviam sido enviados pelo Mestre para pregar o Evangelho e “expulsar muitos demônios e curar muitos enfermos” (Mc 6,12).  Numerosas pessoas foram beneficiadas. Certamente sentiram-se privilegiados por serem escolhidos por Jesus e enviados por ele para tão significativa missão. O que eles não esperavam é que outras pessoas, além deles, pudessem realizar as mesmas obras. Certamente ficaram enciumados, como aconteceu com Josué, conforme nos revela a primeira leitura. 

Todas as pessoas recebem dons para alegria e felicidade de todos, independentemente da instituição ou da tradição religiosa a que pertencem. Portanto, não tem sentido o ciúme ou a competição. O que importa é que todos os dons sejam aplicados verdadeiramente para o projeto de vida nova para todos. Sem Jesus, os discípulos não podem fazer nada, mas o poder de Deus manifestado em Jesus não é posse exclusiva dos discípulos.

No texto do evangelho deste domingo temos ainda outros ensinamentos de Jesus a seus discípulos. E sublinha:  “Ai daquele que fizer cair no pecado a um destes pequeninos…” (v. 42).  A palavra “escândalo”, na linguagem bíblica, tem dois significados fundamentais: o de “tropeço” e o de “obstáculo”.  Na primeira referência indica algo que é causa de queda, que leva para fora do caminho, que conduz ao pecado e à “geena”, que em muitas traduções traz também a palavra inferno.  A segunda expressão: “obstáculo”, indica algo que barra e impede o acesso; ou seja, aquilo que se opõe à fé e à entrada no reino de Deus.

Geena é o nome de um vale que fica a oeste de Jerusalém, onde crianças eram oferecidas em sacrifício a Moloc (cf. 2Rs 23,10; Jr 7,31; 19,5s).  Um local usado como lugar de queima do lixo. Um constante fogo queimava o lixo da cidade e uma fumaça mal cheirosa mantinha as pessoas afastadas.  Era um lugar desagradável, símbolo da ruína e da destruição para a qual caminha quem se entrega ao pecado.  Tornou-se assim o sinônimo do lugar de castigo.  A expressão “ir para geena”, em contraste com “entrar na vida”, significa a ruína espiritual, a destruição. O local onde o fogo nunca se apaga.

Essas analogias eram conhecidas no tempo de Jesus e eram frequentemente usadas pelos rabinos para advertir e inculcar nas pessoas uma seriedade de vida mais profunda, para sacudir a consciência de quem descuidava dos próprios deveres em relação a Deus e ao próximo.  E a temática do “escândalo aos pequeninos” é tão forte que Jesus diz que é melhor perder algo importante para si do que cair neste pecado. Evidentemente, esses versículos não podem ser entendidos literalmente. Não se trata de mutilar o próprio corpo para evitar o pecado. Trata-se, sim, de viver uma autêntica ascese, sabendo cuidar de si mesmo e retirando da vida aquilo que pode levar a romper a comunhão com Deus.

Contudo, o maior escândalo, por parte dos cristãos, consiste em não viver as exigências da fé e barrar o caminho a quem quer acolher Cristo em sua vida.  Se somos cristãos e não damos o exemplo, se não vivemos as exigências da fé, podemos ser também motivo de escândalo para as outras pessoas. Se professamos seguir o Evangelho e depois, na vida, somos injustos com o próximo, alheios frente a necessidade e a dor do nosso irmão, impedimos que as pessoas levem a sério a palavra de Jesus, que se convertam e creiam nele. Há muitos que estão alheios, e mesmo combatem a fé, em função do mau testemunho que nós, cristãos, damos. 

 

Peçamos ao Senhor Jesus que nos faça eliminar toda atitude arrogante, que causa o mal e a desordem na nossa própria vida e na vida do nosso próximo, sobretudo dos mais pequeninos. Que saibamos experimentar cada dia as palavras do Evangelho e façamos uma honesta análise do nosso comportamento, se estamos ou não sendo motivos de escândalo para os outros. Procuremos extirpar tudo o que contradiz o Evangelho e causa dano aos que querem entender e praticar verdadeiramente os ensinamentos de Jesus.  Assim seja. 

Anselmo Chagas de Paiva, OSB
Mosteiro de São Bento/RJ

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