A afetividade e a sexualidade no processo de discernimento vocacional

José Lisboa Moreira de Oliveira, SDV
Consagrado presbítero da Sociedade Divinas Vocações (Vocacionistas), doutor em teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), autor de diversos livros e dezenas de artigos sobre a temática vocacional, Diretor-Presidente do Instituto de Pastoral Vocacional (IPV), assessor do Setor Vocações e Ministérios da CNBB.

O Setor Vocações e Ministérios da CNBB promoveu, de 6 a 8 de setembro de 2002, na Casa de Retiros Assunção, em Brasília (DF), mais um Seminário de estudo para animadores e animadoras vocacionais. O tema foi: “Questões de afetividade e sexualidade e suas conseqüências para uma opção vocacional livre, consciente e responsável”.

Esteve assessorando o referido Seminário o Pe. Edênio Valle, verbita, psicólogo, profundo estudioso e conhecedor da temática. Durante dois dias e meio mais de 40 animadores e animadoras vocacionais, provenientes de 12 Regionais, com a ajuda do Pe. Edênio, se debruçaram sobre as duas questões, buscando compreender a relação disso com a opção vocacional.

Ao final do Seminário, os participantes elaboraram algumas convicções para serem partilhadas com os demais animadores e animadoras vocacionais, inclusive os nossos bispos, primeiros responsáveis da Pastoral Vocacional nas Igreja diocesanas. A seguir apresento essas convicções, divididas em três âmbitos e seguidas de um breve comentário.

1. Em âmbito pessoal

Cada animador vocacional deve convencer-se da importância e do lugar que ocupa a questão da afetividade e da sexualidade na sua vida pessoal e na vida dos vocacionados e vocacionadas que acompanha.

Sendo algo profundo e bastante complexo, não é suficiente um conhecimento periférico, superficial. Torna-se indispensável estudar seriamente a questão, inclusive com a ajuda de especialistas no assunto. Tanto os animadores vocacionais como os que trabalham nas casas de formação precisam ser preparados para enfrentar essa temática, sobretudo no trabalho direto de acompanhamento vocacional. É imprescindível evitar a tentação de achar que sabemos tudo e que temos condições de enfrentar sozinhos, sem a ajuda de peritos, os desafios que hoje se nos apresentam.

Ficou constatado também o fato que os próprios animadores e animadoras vocacionais ainda não se libertaram totalmente de problemas ligados à vivência da própria afetividade e da própria sexualidade. Isso dificulta por demais o trabalho de acompanhamento. Por isso, é urgente a humildade para aceitar e a coragem para admitir as próprias lacunas, dispondo-se para um acompanhamento capaz de nos tornar mais sadios e mais preparados para a missão. Não é possível contribuir para o amadurecimento dos outros se ainda carregamos pesados fardos e expressões visíveis de imaturidade.

Dentro desta perspectiva, o animador ou animadora vocacional deve preocupar-se antes de tudo com o bem e a realização da pessoa humana e não pensar somente no quadro institucional. Às vezes, querendo resolver o problema da instituição, como, por exemplo, a falta de pessoal, o animador ou animadora vocacional torna-se precipitado, queima etapas, não tendo a paciência de esperar que o vocacionado ou vocacionada disponha do tempo suficiente para adquirir maturidade.

Hoje volta a tentação de dar pouco ou quase nenhum valor à dimensão humano-afetiva, achando que tudo pode ser resolvido com uma simples reza: “reze que passa…!”. Esquecemos que a própria espiritualidade depende de uma pessoa harmonizada e equilibrada. Há séculos estamos repetindo o famoso axioma: “A graça supõe a natureza”. Portanto, é, no mínimo, ingenuidade pensar que não precisamos cuidar de nossa natureza, achando que tudo pode ser resolvido somente com o “espiritual”. A pessoa humana é uma realidade complexa e sagrada. Não pode ser manipulada e tocada para frente de qualquer jeito. Ela pede máximo respeito!

2. No âmbito das Equipes Vocacionais

Diante desses desafios é preciso repensar a atividade das Equipes Vocacionais. Elas devem trabalhar melhor e com mais seriedade, fazendo do acompanhamento vocacional um itinerário que leve ao crescimento e amadurecimento das pessoas, especialmente dos jovens vocacionados e vocacionadas.

No esforço de ajudar a cultivar o chamado divino, a Equipe Vocacional não deve perder de vista o que realmente é essencial. Importa que a pessoa sinta-se bem, humanamente falando, para responder generosamente ao chamamento divino. Portanto, antes de pensar numa vocação concreta, específica (cristão leigo/a, vida consagrada, ministro ordenado), deve-se buscar a realização da pessoa humana. Somente alguém harmonizado consigo mesmo, de bem com a vida, pode colocar-se generosamente no seguimento de Cristo. É verdade que somente em Cristo o ser humano atinge a sua plenitude (cf. GS, 22), mas é também verdade que o Criador dotou a criação de certa autonomia. Por isso pode-se e deve-se falar de uma vocação natural que precede o discipulado. Antes de sermos cristãos e cristãs somos chamados a ser gente: de carne e osso! (cf. CNBB, Batismo: fonte de todas as vocações. Texto-Base do Ano Vocacional 2003, n.º 119).

Em vista desse objetivo, as Equipes Vocacionais, tanto diocesanas como paroquiais, devem cuidar para que toda a Igreja local (diocese ou paróquia) se dê conta dessa realidade. Isso pode ser feito a partir de um trabalho de interação com as pastorais, de modo particular com aquelas que estão mais afinadas com a animação vocacional: Família, Juventude e Catequese. Por meio dessa interação deve-se buscar a promoção de atividades que visem o aprofundamento das questões de afetividade e de sexualidade, tendo como meta um sadio equilíbrio afetivo-sexual das pessoas, particularmente dos jovens.

Além disso, duas outras coisas são fundamentais. Antes de tudo, que esta temática seja estudada com mais seriedade no âmbito das próprias equipes vocacionais. Não basta apenas mencionar os desafios, angustiar-se e verbalizar as preocupações. É preciso debruçar-se sobre o tema, estudando demoradamente, contando com a assessoria de especialistas no assunto. Além disso, urge insistir para que os jovens e as jovens não ingressem nas casas de formação ou cheguem a compromissos definitivos (casamento, profissão religiosa, ordenação) sem terem passado por um processo sério de acompanhamento e de avaliação do andamento da própria afetividade e sexualidade.

Tudo isso que acabou de ser dito nos diz que é preciso encontrar um jeito novo de fazer animação vocacional. Que ela seja mais eclesial, aberta a todas as vocações, carismas, ministérios, serviços e não apenas voltada para a busca de candidatos para as casas de formação e para os seminários. Uma animação vocacional que vise o bem das pessoas e não apenas a solução da falta de sujeitos para os quadros da instituição. Por fim, uma animação vocacional que contemple a história dos vocacionados e vocacionadas e a realidade das famílias de onde provém os nossos jovens.

3. No âmbito dos Regionais e Dioceses

Sendo a questão da afetividade e da sexualidade um elemento que interfere na caminhada vocacional das pessoas, torna-se necessário pensar em ações concretas que ultrapassem o âmbito da paróquia e da comunidade. É indispensável um agir programado e projetado que se desenvolva nos Regionais e nas Dioceses.

Os participantes do Seminário são do parecer que a temática da afetividade e da sexualidade seja retomada nos Regionais, através de seminários ou encontros que envolvam representantes das dioceses. Estes devem ser pessoas capazes de depois repassar os conteúdos para os membros das equipes vocacionais paroquiais, não apenas em forma de notícias, mas de verdadeiros momentos de estudo e de reflexão. De fato, o fortalecimento das convicções e a mudança de determinadas práticas só acontecerão se a reflexão chegar até “as bases”. Precisamos evitar a formação de uma “elite” de detentores do saber que, muitas vezes, não passa adiante aquilo que é visto e refletido nos grandes encontros.

Viu-se também que esta temática não pode ser estudada e analisada de forma esporádica, uma vez ou outra, especialmente quando surgem escândalos e problemas. Ela precisa ser refletida de forma permanente. Por isso o grupo sugeriu que se forme nos Regionais e Dioceses núcleos permanentes de discussão e de reflexão sobre esta questão da afetividade e da sexualidade, encarando-a de maneira mais séria e mais científica, evitando o mau costume de apenas “tocar” no problema sem olhá-lo de frente, com a coragem e a audácia necessárias.

Além disso, os Regionais e as Dioceses precisam retomar os verdadeiros conceitos de vocação e de pastoral vocacional. Sabemos que a quase totalidade dos problemas surgidos na área da afetividade e da sexualidade estão relacionados com uma concepção reducionista da vocação e da animação vocacional. Esse reducionismo faz com que haja pressa, precipitação e supressão de momentos, passos e fases essenciais da caminhada. Em muitos lugares prevalece a mentalidade que considera como único critério para a admissão a compromissos definitivos o fato da pessoa ter terminado os estudos acadêmicos ou ter feito um pedido para a etapa seguinte. Enquanto isso, outras dimensões do discernimento e da formação são vistas de forma acelerada, quando não totalmente suprimidas ou esquecidas. Tal mentalidade tem se revelado um verdadeiro desastre para a vida da Igreja.

É claro que esta nova mentalidade supõe uma outra: aquela de enxergar a Igreja como Assembléia dos chamados (cfr. PDV, 34). Numa Igreja comunidade de vocacionados e de vocacionadas todas as vocações, carismas e ministérios são importantes. Assim sendo, não haverá a grande tentação de “fabricar” padres e freiras a qualquer custo. A única e verdadeira preocupação será aquela de contribuir para que as pessoas descubram o projeto de Deus para cada uma delas.

Em vista deste princípio o bispo, com o seu presbitério e com os que fazem animação vocacional, será mais criterioso na hora de admitir pessoas aos compromissos definitivos (matrimônio e ordem). O mesmo acontecerá nos institutos de vida consagrada. Prevalecerá muito realismo, honestidade e bastante amor às pessoas e à própria Igreja. Considerando o contexto atual, toda a problemática da família e do convívio social, não se hesitará em observar com muita atenção o perigo de serem recebidas nas casas de formação pessoas com sérias patologias e com certas anomalias, inclusive psicóticos e neuróticos. Hoje há muitas dioceses e congregações pagando um preço amargo por não terem cuidado melhor desta questão.

Por fim, pediram os participantes do Seminário, os bispos cuidem para que a dimensão humano-afetiva seja levada mais a sério nas casas de formação. De fato, o Documento 55 da CNBB, dedicado às Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil, deixa bem claro que a preparação dos candidatos passa também por esta perspectiva. Não considerar essa realidade seria pretender bons pastores, esquecendo algo sumamente essencial para o futuro dos que amanhã vão estar à frente de nossas comunidades.

Com certeza, determinadas questões poderiam ser diferentes se houvesse maior interação entre o masculino e o feminino. Por isso mesmo a animação vocacional precisa encarar com maior seriedade as questões de gênero. Na articulação dos dois gêneros haverá maior equilíbrio, sensatez e harmonia, mesmo entre aqueles que escolhem o caminho do celibato. Isso tem a ver com o projeto inicial de Deus, o qual quis que fosse sua imagem e semelhança não apenas um dos gêneros, mas os dois ao mesmo tempo: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27).

A nossa sociedade e a nossa Igreja ainda são tremendamente machistas. Por isso, dentro delas ainda há tantos desequilíbrios humanos, afetivos e sexuais. Urge, pois, abrir mais espaço para a mulher, reconhecer que sem ela seremos incompletos, deformados. Isso vale também para a vida dos presbíteros e para os seminários. O próprio papa João Paulo II reconhece essa verdade. Ele falou de um saudável influxo do carisma da feminilidade no itinerário educativo dos futuros padres (cf. PDV, 66e). Portanto, “não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18).

Conclusão: uma dimensão bastante significativa

A afetividade e a sexualidade formam uma dimensão significativa da pessoa humana. Por essa razão precisam ser levadas mais a sério na pastoral vocacional e na formação das pessoas, de modo particular na vida consagrada e nos ministérios ordenados.

Diante dessa consideração causa muita preocupação a forma como, em muitos lugares e por algumas pessoas, esta dimensão ainda é tratada ou até desconsiderada. É urgente formar, preparar os animadores vocacionais e os formadores para que saibam lidar com mais naturalidade com esta questão. Os problemas afetivos e sexuais, hoje cada vez mais freqüentes, sobretudo entre os jovens, devem ser enfrentados com competência e espírito científico.

É preciso absolutamente evitar que jovens sejam admitidos nas casas de formação sem terem passado por um acompanhamento sério, eficaz, capaz de oferecer-lhes as condições para um autêntico amadurecimento. Os bispos, responsáveis primeiros pela formação e pela pastoral vocacional, precisam cuidar para que a dimensão humano-afetiva seja levada a sério desde o momento do discernimento vocacional.


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