A Idade Moderna – De Erasmo a Nietzsche

A Idade Moderna
De Erasmo a Nietzsche
ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS
por Eric Voegelin

Tradução e abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996

§ 1. O meio social. Imprensa e audiência

§ 2. O debate de Leipzig em 1519

§ 3. Os símbolos de igreja e transubstanciação

§ 4. As 95 teses

§ 5. O Apelo à nobreza cristã da nação alemã

§ 6. A justificação exclusiva pela fé

§ 7. O princípio do fim

§ 1 O meio social. Imprensa e Audiência

A Reforma foi o primeiro grande movimento social a contar para a sua propagação com um novo meio técnico: a palavra escrita. Aproveitando as circunstâncias do extraordinário desenvolvimento da imprensa desde meados do século XV e que aumentou o número de obras em circulação de algumas dezenas de milhares de manuscritos para alguns milhões de livros e panfletos, Lutero chegou a atingir um quase monopólio das casas editoras alemãs ocupadas em imprimir os seus sermões, panfletos, as cartas e a tradução da Bíblia. Em segundo lugar, a Reforma é alimentada por um novo e grande público de professores e alunos. Entre 1385 (Heidelberg) e 1502 (Wittenberg) são fundadas na Alemanha 15 novas universidades. Em Wittenberg junta-se o trio formado por Lutero, Melanchton e Carlstadt. Ao serem nomeados professores, o primeiro tem menos de 30 anos, o segundo tem 21 anos (1518). No século XV, apenas em Espanha houve um surto paralelo de energia cultural, estando as 7 universidades então fundadas dependentes da Inquisição, fundada em 1478, da Coroa (Concordata de 1482) e da Ordem Dominicana. Estes novos meios de comunicação social criaram um mundo de escritores e leitores, de livros e debates literários com grande rapidez e coesão na disseminação das ideias. A mensagem e os problemas agitados não eram novos e o estado da Igreja não era mais grave que no cativeiro de Avinhão. Só que as instituições, as questões teóricas e os acontecimentos eram agora avaliados por um crivo mais apertado e numa situação cada vez mais explosiva. E o monge de Wittenberg será o epicentro da Reforma, esse vasto movimento da consciência europeia que começa com actos e não com doutrinas e cujo curso é em grande parte determinado pela interacção entre a situação histórica a personalidade de um homem.

§ 2 O debate de Leipzig em 1519

Supõe-se correntemente que o cisma das Igrejas é consequência fatal da acção de Lutero. Na realidade, a sequência é inversa. O cisma das Igrejas é anterior e, inicialmente, ninguém pretendia agravá-lo. Desde 1054 que existia um cisma entre Roma e a Igreja Ortodoxa, um facto que o Concílio de Florença de 1439 não conseguira modificar. Esta questão dormente veio à tona no debate de Leipzig em 1519 entre os teólogos Lutero e Eck. Este, como adiante se verá, queria promover a sua carreira, Lutero não sabia calar-se e o Eleitor da Saxónia, que poderia ter proibido o debate, acreditava que da livre discussão nasceria a luz. Sustentava Eck que os cristãos Gregos estavam condenados ao inferno por não reconhecerem o pontificado de Roma enquanto Lutero defendia a possibilidade de salvação dos Gregos. Apesar de os Gregos jamais terem reconhecido o pontífice romano, os santos e padres da Igreja Grega não eram heréticos. Iria o Papa expulsar do céu S.Basílio e S.Gregório de Nazianzeno ? O debate conduziu à questão da natureza do papado. Segundo Eck, considerar o papado como instituição humana era característico dos Hussitas,de Wycliff e dos manifestos de York, posição condenada pelo Concílio de Constança. Pretenderia alguém saber mais que o Concílio ? O que Lutero afirmava é que um cristão não podia ir para o inferno só porque nascera nos arredores de Constantinopla.

O que estava em jogo não era novo. Conquanto o tema raramente  fosse referido, a concórdia cristã sempre estivera exposta a um risco de decisionismo. A unidade da Igreja sempre assentou na boa vontade para haver compromisso e cooperação de acordo com o espírito de Jesus Cristo. Se a liberdade de cooperação se atrofia a ponto de a unidade ter de assentar na decisão de uma autoridade parcial, cresce o perigo de cisma, como se verificara nas tentativas de reforma inglesa e boémia. O movimento conciliarista do século XV desprestigiara a acção dos Concílios no momento em que o consenso era mais necessário. E a literatura de controvérsia volveu-se em literatura sectária, estendendo-se posteriormente às divisões partidárias e nacionais. A verdade é que a cristandade como religião histórica se diferenciara de acordo com áreas de civilização, um problema que não podia ser arrumado com declarações mútuas de heresia.

§ 3. Os símbolos de Igreja e Transubstanciação

As questões muito específicas da Disputa de Leipzig exemplificam a crise de um conteúdo ornara difícil de digerir intelectualmente. A essência do cristianismo exige um reajustamento permanente de expressão. O que é já um problema grave no interior de uma sociedade, ainda mais se complica quando o reajustamento bule com a grandeza de várias civilizações. A Igreja é uma parcela de eternidade na história mas as expressões doutrinárias da verdade cristã não parecem tão eternas quando atingidas pela relatividade histórica. A principal vítima da dificuldade de lidar com a historicidade do cristianismo foi o símbolo da própria Igreja. Na Antiguidade, S.Paulo estabelecera um compromisso mediante a interpretação da cultura pagã e da lei hebraica como prelúdios da revelação cristã. Os concílios da cristandade romana tinham harmonizado a pluralidade de sociedades cristãs através de consenso na Cristologia. Após Carlos Magno e as cruzadas, a situação cismática dormente na Igreja sofreu um agravamento com o novo horizonte histórico oriental e com as crises internas ocidentais. Se a romanitas como poder espiritual não era um símbolo vão, a supremacia pontifícia aparecia sobretudo como a evocação do império romano do Ocidente. Nesse caso, a relativização histórica da ideia imperial seria também a relativização do cristianismo. Como deveria ser defendida a ideia da Igreja universal ?

A outra questão ardente da reforma era a transubstanciação. O termo tomista conversio descreve o mistério da transformação do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo, posição inquestionada até ao séc. XIII. A partir de então, a vaga crescente de intelectualismo suscita tentativas sucessivas para explicar o mistério como um problema que pudesse ser positivamente resolvido. O 4º Concílio de Latrão, de 1215, definiu que Transubstanciação era uma mudança de substância que não afectava os acidentes. A conversio é um símbolo de origem pré-cristã cujo alcance pode ser detectado em passagens como I Coríntios 11,23-29, por exemplo: “O que recebi do Senhor, transmito-vos também…Quem comer o pão ou beber o cálice do Senhor sem merecimento (anaxiós) será culpado do sangue e corpo do Senhor… Quem beber e comer sem discernir  (mé diakrinón) o corpo do Senhor bebe e come juízo (krima) para si mesmo“. Como lemos em Gálatas 1 e 2, a conversio narra a experiência autêntica do Evangelho revelado pelo Senhor a Paulo. Após a revelação na estrada para Damasco, Paulo retira-se para a Arábia, depois regressa a Damasco, vai a Jerusalém passados três anos encontrar-se com Pedro e Tiago com quem fica quinze dias e só depois de catorze anos regressa a Jerusalém com Barnabé e Tito para informar os apóstolos do Evangelho que pregava aos gentios. A conversio é uma experiência real e uma experiência não pode ser desmentida. Mantém a sua verdade enquanto o crente a aceitar e enquanto o símbolo despertar a experiência por anamnesis: “Fazei isto em memória de Mim“. Tais elementos são reveladores, diferentemente do que afirma a chamada historiografia “crítica” do Evangelho, não porque ponham em causa a validade dos Sinópticos mas porque neles se detecta a admirável passagem do rito pré-cristão para o símbolo da doutrina cristã que lhe veicula o significado.

Estes elementos ajudam a estabelecer o nível teórico da questão maltratada na Reforma. Teoricamente é muito discutível submeter um mistério como a conversio a uma interpretação em termos da metafísica aristotélica, tal como sucedeu na doutrina da transubstanciação. Quando a conversio se torna uma proposição de química transcendental, a sua verdade torna-se discutível. Metafísicos especiosos como Durand, Occam e d’Aillly ensaiaram soluções tais como considerar que a substância do pão coexiste com o corpo do Senhor. Trata-se de variantes da ideia de consubstanciação a que também pertencem as doutrinas luterana da “presença real”, ou a retórica de Calvino, ou a simbolização comemorativa de Zuínglio. Todas falham em resolver a questão. Uma vez ultrapassada a idade da fé elementar seria possível renová-la através da compreensão anamnética de experiências anteriores, como  fez Agostinho na sua teoria do símbolo, Crede et manducasti, uma solução de profundo nível espiritual. O risco cresce na zona mediana entre a fé pura e a sofisticação intelectual. Ora a sofisticação intelectual da Renascença permitia ver o problema mas não permitia ver a solução. A questão da transubstanciação degenerava numa querela pseudo-metafísica entre intelectuais que não dominavam o assunto.

A confusão é instrutiva acerca das tendências em conflito: 1) Era possível desejar o regresso à aceitação simples da fé pura. Lutero insiste por vezes na presença real sem mais nada acrescentar. Será uma solução inconsistente mas pelo menos não é errada. 2) Compreende confusamente a necessidade de um aprofundamento espiritual. Na obra de 1520, Das hauptstück des ewigen und newen Testaments etc(…) ensaia a distinção entre a palavra e o signo de Jesus Cristo:”Podemos dispensar o signo mas não a palavra: porque não existe fé sem a palavra divina“. Deste modo, a comunhão real é o fortalecimento da fé através da palavra e o sacramento só pode ser recebido na confirmação da fé. 3) Enfim, podia-se levar ao extremo a destruição parcial do símbolo ensaiada pela metafísica e enveredar pela alegorização completa tal como fazem Carlstadt, Zuínglio e Ecolâmpadio. E, acrescente-se como corolário para a história das ideias, verifica-se assim que a inclinação para generalizar as operações do intelecto ao domínio da fé e da crença é afinal uma criação de crentes Católicos do sec. XII, agravada pelos crentes Protestantes do séc. XVI e que só se evidencia com a acção dos descrentes iluministas no séc. XVIII.

§ 4. As 95 teses

Nesta análise, importa insistir em problemas específicos porquanto, além de impossível, pouco adiantaria ver uma por uma as circunstâncias da Reforma. Pode dizer-se que a espiritualidade das massas no final do séc XV era superior à de épocas anteriores. Disso eram prova obras como a Imitação de Cristo e a Theologia Germanica do anónimo de Frankfurt publicada e prefaciada pelo próprio Lutero. Mas embora as Ordens mendicantes, em particular, tivessem elevado o nível espiritual das populações urbanas, a vaga de misticismo do séc. XIV-XV já não fora canalizada pela Igreja para formas institucionais: pelo contrário, dera origem aos movimentos sectários do “povo de Deus”. E não era preciso ser um destes “espírito livres” para desaprovar muitas das práticas da Igreja a exigir reforma imediata; bastava ter formação mística.

Entre os factores que contribuíram para a explosão de 1517, as indulgências foram a centelha que a acendeu. A prática das indulgências era tradicional e significava a remissão dos castigos temporais impostos pela Igreja como sinal exterior da verdadeira contrição. Tais remissões de castigos, por vezes muito severos, eram praticadas desde o séc. VII. A comutação do castigo em penas pecuniárias era conforme às regras de remissão do Direito Romano. Ademais, costumava-se justificar o costume mediante a doutrina desenvolvida por Alexandre de Halles no séc. XIII, o Thesaurus Meritorum, ou seja, a acumulação num tesouro da Igreja das expiações supérfluas dos Santos. Numa palavra, a prática das indulgências era uma legítima concessão da Igreja ao ambiente cultural da sociedade, em ordem ao progresso da Cristianização. O abuso inicia-se com a incompreensão popular das indulgências como remissão da culpa e não exclusivamente como remissão do castigo temporal, em particular com a compreensão das indulgências plenárias como remissão da culpa futura. Em termos populares, as indulgências eram um bilhete para o céu sendo certo que, para recolher benefícios, a Igreja não contrariava convenientemente esta explicação.

No início do séc XVI, o sistema envolvia vastas somas de dinheiro e de interesses financeiros internacionais, agravados pelas circunstâncias de 1517. Para Roma, a venda tornara-se uma fonte de rendimentos regulares e extraordinários. Em 1510, Júlio II lançara a Indulgência do Jubileu, sobretudo para custear a nova basílica de São Pedro. A venda fora iniciada em Magdeburgo em 1515.O responsável eclesiástico local era Alberto de Branderburgo, arcebispo de Magdeburgo, Maiença e Halberstadt. 50% do produto da venda eram para os cofres dos Fuegger que tinham adiantado a Alberto a soma necessária para a compra quer dos bispados quer da dispensa pontifícia que lhe permitia a acumulação de cargos. Aliás, os agentes dos Függer acompanhavam in loco o comissário das vendas, o dominicano Tetzel. E é nesta rede de alta finança que rebenta a afixação das 95 teses Acerca do Poder e Eficácia das Indulgências. As teses são um debate académico em latim, semelhante a tantas outras disputationes universitárias da época. Mas insistiam que as indulgências não compram o castigo divino; não abarcam os mortos do Purgatório; e não são justificadas pelo thesaurus meritorum pois só o Espírito divino pode perdoar.

A explosão espalha-se a ritmo veloz. Em duas semanas surge a tradução alemã das teses na Imprensa da Universidade de Wittenberg Um mês depois Lutero é, para surpresa sua, uma figura europeia. A venda de indulgências decai. O arcebispo de Magdeburgo queixa-se a Roma. A Cúria ordena ao importuno monge agostinho que se cale. Tetzel, o comissário das indulgências, publica contra-teses. Eck ataca Lutero; este dá a réplica. O Inquisidor Mazzolini escreve Acerca do Poder Pontifício. No capítulo de 1518 em Heidelberg, os Agostinhos discutem a questão e o monge de Wittenbegr responde-lhes por escrito: é instado a ir a Roma. Desce à liça o Eleitor da Saxónia que considera haver uma afronta a um professor da sua Universidade, além de que a Casa de Brandenburgo ocupara bispados tradicionalmente atribuídos a membros da Casa da Saxónia e que ele nem sequer autorizara a venda de indulgências nos seus domínios. O Papa Leão X revoga a convocação de Lutero a Roma pois não convinha ter o Eleitor da Saxónia por inimigo na eleição, já muito próxima, do Imperador da Alemanha; determina que  o monge compareça perante o Cardeal Cajetanus na Dieta de Augsburgo. A entrevista com o legado do papa corre mal e Lutero escreve que o tentaram silenciar. Pouco depois, o camerlengo papal Von Miltitz obtém de Lutero a promessa de silêncio desde que o não atacassem. Mas Eck volta de novo à carga, agora com a questão da Igreja Grega, provocando a já referida disputa de Leipzig em 1519. A guerra de panfletos e sermões  continua com escritos de ambas as partes. Surge a bula papal Exurge Domine queimada por Lutero em Dezembro de 1520. Em três anos, o episódio desenvolvera-se numa revolução nacional-cristã da Alemanha contra Roma tornando quase impossível qualquer compromisso. O ritmo vertiginoso dos acontecimentos impediu a ponderação necessária para resolver questões doutrinárias, feriu todos os sentimentos possíveis e imagináveis e preparou o cisma.

§ 5 O Apelo à Nobreza cristã da Nação Alemã

Escrito em 1520, An den christlichen Adel deutscher Nation von des christlichen Standes Besserung é uma teoria geral da sociedade  cristã, articulada em uma introdução doutrinária, uma lista de queixas e uma longa lista de sugestões de reforma com 27 artigos. O título fala da melhoria do estado ou estamento cristão. O estado espiritual corresponde ao clero, o temporal à nobreza e o estado cristão ao povo, desprovido de autoridade particular. Por outro lado, o povo é a Igreja e a Nobreza deve ajudá-lo uma vez que o clero não parece disposto a tal. Pressupôe-se que existe uma pluralidade de estados cristãos na cristandade, entre eles a Nação alemã. (Die Not und Beschwerung,die alle Staendes der Christenheit zuvor Deutschland druckt…“. Uma vez que  que a cristandade se articula em estados a que aplica o termo Igreja e Nação,a melhoria do christlich Stand deve abranger a reforma do dogma, ritual e constituição da Igreja Universal, a reforma da Igreja Alemã no sentido de obter maior autonomia à maneira galicana e ainda reformas sociais na Alemanha.

De acordo com a Introdução, numa sociedade cristã, a distinção entre poderes temporal e espiritual só se deve referir a ofícios; não acarreta uma diferença de estatuto espiritual. Por um lado, isto implica que devem cessar as usurpações do poder espiritual, conforme preceitua o princípio gelasiano de separação de poderes. A autoridade temporal tem um estatuto carismático e já Hincmar de Reims integrara a realeza monárquica na hierarquia dos ofícios carismáticos do Corpo Místico de Cristo. Parece apenas uma reafirmação deste princípio medieval da autoridade do poder temporal. Até aqui, a doutrina está contra o status quo, mas com uma orientação conservadora. A doutrina torna-se revolucionária mediante a extensão das funções espirituais no Corpo cristão. Quem sustentar que o ofício de governar é inferior ao eclesiástico deveria aceitar também que sapateiros, ferreiros, alfaiates, cozinheiros, camponeses e criados eram demasiado baixos para fornecer papas, bispos, padres e monges com sapatos, roupas, casas, comida, bebida e bens. Todos têm uma função carismática.

As considerações muito espraiadas da obra cristalizam em três princípios que são como que uma âncora na doutrinação torrencial e confusa: 1) Sacerdócio universal de todos os cristãos; 2) Igualdade carismática de todas as funções no corpo cristão; 3) Hierarquia de ofícios. Extrai-se ainda o corolário de que o sacerdócio universal confere a cada indivíduo a autoridade para interpretar as Escrituras, o que implica desautorizar o magistério da Igreja e a autoridade pontifícia em questões de fé. Ninguém se deve arrogar o comando da comunidade nem deve abdicar da liberdade de julgar, como se prova por I Cor 2:15 e II Cor. 3:17.

O que mais surpreende é a incapacidade do doutrinário em prever as consequências das suas doutrinas. Ao substituir a concentração da infalibilidade eclesial, fazendo de cada cristão um “Papa”, abria a porta a intermináveis disputas. O apelo tinha sido usado por Bonifácio VIII para suportar a sua autoridade de homem espiritual sobre os meros psychici; agora o apelo é dirigido ao homem da rua e conduz à guerra de todos contra todos. É difícil aceitar que Lutero ficasse surpreendido quando em 1521 os seus ensinamentos são seguidos à letra por Thomas Munzer em Zwickau. O processo hermenêutico dos novos profetas é óbvio. A fé substitui as Escrituras: o lógos que inspirou as Escrituras é distinto da palavra escrita; a posse directa do logos é suficiente para o profeta inspirado. O profeta de Zwickau “falava com Deus” e dispensava outras fontes. Carlstadt pediu aos estudantes que fossem para casa ganharem o pão com o suor do seu rosto porque os profetas providenciariam os conhecimentos. Os estudantes não se fizeram rogados e os homem das ruas continuaram a profetizar. Apenas a atitude anti-filosófica explica a irresponsabilidade em não prever que o princípio da autonomia da interpretação das Escrituras acarreta a anarquia interpretativa. Lutero avaliava a sua doutrina como um regresso à tradição das Escrituras contra as obscuridades da Escolástica. Tal como Erasmo, estava cego pelo ódio contra Aristóteles e julgava que liquidar a filosofia seria possibilitar a compreensão simples e natural das Escrituras. Esta atitude irá marcar toda a cultura moderna e faz reflectir no facto histórico que o termo intelectual denota os indivíduos que odeiam o paciente trabalho filosófico do intelecto.

Não é casual o modo como o § 25 da obra projecta a reforma do ensino das Universidades e das escolas. As universidades tinham-se tornado em gymnasia Graecae gloriae. O “cego mestre pagão” Aristóteles, “essa praga que Deus nos enviou devido aos mossos pecados” deveria ser eliminado do ensino. Dele apenas deveriam permanecer a Lógica, Retórica e a Poética para o ensino do discurso e da pregação. Além disso ensinar-se-ia Latim, Grego, Hebreu, Matemáticas e História. As Faculdade de Direito deveriam eliminar o Direito Romano e Canónico. As Faculdades de Teologia deveriam começar o ensino pelos Livro dos Provérbios e aplicar-se depois ao estudo dos textos Bíblicos. A Patrística serviria só como introdução. Aliás, a Universidade bem poderia fazer doutores; doutores de teologia só o Espírito os poderia criar. O acesso às universidades deveria ser restrito: “receio que as escolas superiores sejam portas abertas para o inferno“.

O anti-filosofismo é uma atitude profundamente anti-cultural. Poderá não concordar com sectarismos, como se comprova pelo seu apelo contra os camponeses (um escrito habitualmente interpretado como uma fraqueza momentânea). Mas pretende efectivamente criar uma nova ordem social e fica admirado quando indivíduos radicais o ultrapassam no trabalho de destruição. “So haben wir es nicht gemeint“, eis a situação do aprendiz de feiticeiro que quer resolver complicados problemas intelectuais e sociais com uma destruição limitada mas que assiste ao desencadeamento de forças que não controla. Posteriormente       Melanchton procurou colmatar as brechas anti-filosóficas do reformador, criando uma Escolástica protestante, tal como Calvino com a Institutio. Mas para Lutero nada se poderia sobrepor à grande tarefa de reformar a Alemanha, ou seja, a criação de uma sociedade nacional-cristã que integraria a sociedade universal cristã. Como a sociedade universal era a Igreja, que não deveria ser abolida, a reforma da Igreja tornava-se indispensável, por muita confusão e cisma que causasse na Igreja universal.

No que se refere à reforma social, os artigos 1-13 do Apelo à Nobreza lidam com a autonomia da área nacional dentro do estado universal cristão. É advogada a proibição de pagamento anuais a Roma e a investidura de estrangeiros em cargos nacionais; Roma não deveria confirmar os bispos; os casos litigiosos deveriam ser julgados em tribunais alemães; Roma não deveria apoderar-se de feudos: os casus reservati deveriam ser abolidos; o pontífice deveria entregar os feudos dos Estados Papais, (“tirar a mão da sopa“). O art.12 reclama a abolição das indulgências e das peregrinações a Roma e o art.13 a redução dos mosteiros de ordens mendicantes a 10% dos actuais e proibição de pregar e confessar para as restantes ordens. Os artigos 14-23 atacam as excrescências da vida religiosa e reclamam a reforma dos costumes.14) O celibato é secundário para a escolha do bom pastor; 15) A disciplina nos conventos deve ser reformada. 16) Contra o abuso das missas de finados. 17) Contra o abuso dos interditos. 18) Abolição de dias feriados. 19) Abolição de proibições e dispensas para casamentos e de jejuns: “Mandam-nos comer óleo com o qual não limpariam os sapatos e depois vendem-nos licenças para comermos manteiga“, tema recorrente das Butterbriefe. 20 Contra a exploração comercial das peregrinações; 21 Contra o peditório organizado 22.23 Contra missa votivas e abusos vários. Os últimos artigos, 24-27, tratam de questões políticas e sociais. No art.24,  Lutero não se pronuncia sobre os Irmãos Morávios mas acha que Jan Huss jamais deveria ter sido queimado. O art. 25 sobre as Universidades foi já referido. O art.26 é significativo para a visão de uma história autónoma profana, pois ataca a suserania papal sobre o imperador. Roma morreu há mil anos e não deve continuar a ensombrar o presente. A Translatio imperii não é um título legítimo de poder e o império do Ocidente assenta num acto de violência. Deus tem em tão pouco apreço o poder, que por vezes o confere aos criminosos e nada de grande há em continuar Roma. Mas uma vez que o império existe, deve ser governado por um alemão. O art.27 aborda as reformas na esfera alemã e sugere pragmáticas contra o luxo e a usura, Zinskauf. São condenados financeiros como os Fugger que praticam juros de 20% a 100% e que acumulam riquezas em excesso. Por outro lado, o povo alemão come em excesso, o que, além de ser um vício é um comportamento anti-económico. A autoridade secular terá de reformar todos estes maus hábitos.

A análise do Apelo, que é simultaneamente um catálogo dos males do tempo e um manifesto político mostra claramente o contexto em que decorre a acção e ajuda a destruir os clichés acerca da Reforma, em particular a suposição que a Igreja é o objecto da Reforma. A Reforma resultou no cisma da Igreja mas não começou por aí. Lutero originou o Protestantismo mas era, afinal, um Católico revoltado que tinha por objectivo mudar o estado cristão. Reformar, para ele, é reduzir os juros, acabar com as indulgências, mudar a sociedade, a Igreja e a sociedade europeia. Um programa destes levaria séculos e muitas guerras e revoluções para ser levado a cabo. As guerras e as revoluções acabaram por vir. Mas que pensaria Lutero da sociedade reformada que emergiu ?

§ 6 A Justificação exclusiva pela Fé

Atente-se na personalidade do “reformador”. Foi influente Administrador da ordem dos Agostinhos, professor em Wittemberg, político eclesiástico activo, prolífico comentador das Escrituras e a sua tradução da Bíblia cria praticamente o alemão moderno comum. Os seus sermões, conversações e correspondência enchem volumes. É conhecida a sua sensibilidade à natureza e aos animais, a sua obra de músico e de poeta, a irritabilidade e a necessidade de exteriorizar os seus sentimentos. No seu temperamento e na sua obra predominam a espontaneidade lírica. As suas inconsistências radicam na sua ansiedade. Esta atitude fundamental de ansiedade e incerteza de salvação veio a exprimir-se na doutrina da sola fide que retrata o cerne da sua antropologia anti-filosófica e que assenta na censura à justificação pelas obras e à doutrina da fides caritate formata. Sendo mais conhecido o primeiro aspecto, o segundo é mais importante e merece uma análise algo detalhada.

Na Summa Contra Gentiles, cap.116, S. Tomás de Aquino define a essência da fé como amicitia entre Deus e o homem. A fé carece de uma componente intelectual porquanto é impossível amar a Deus sem captar intelectualmente a visão beatífica do summum bonum como finalidade da vida humana. Para alcançar tal desiderato, é necessário o complemento deliberado do amor pois é pela vontade que o homem confirma o que apreendeu pelo intelecto. A relação de amicitia é mútua e livre. Não depende só do impulso humano mas supõe também a actuação da graça divina que eleva por forma sobrenatural a natureza humana. A transferência e o uso analógico do termo aristotélico f orma, permite a Tomás descrever a infusão de graça como a fé formada pela caridade, ou seja como a realidade da existência orientada para Deus.

A doutrina da fides caritate formata é uma obra prima de descrição empírica que permite a Tomás estabelecer uma tipologia da fé, com tipos plenos e deficientes. A fé pode apenas ser uma orientação intelectual sem amor; ou um impulso sentimental desacompanhado da graça; ou uma emoção utilitária marcada pela ansiedade e medo das consequências. Mas nada disto é a fé cristã que é uma cultura integral da vida. Ora, um dos pontos culminantes da filosofia e da teologia helénicas e não-cristãs, o movimento de transcendência para o realissimum que atrai o homem movido pelo impulso de Eros, é ainda um movimento unilateral da alma. A participação na ideia leva à realização da alma mas essa participação não é uma relação mútua. O homem, segundo Platão, procura a divindade; mas a divindade não se inclina graciosamente para aceitar a declaração do amor humano. Não existe um equivalente helénico para uma afirmação como a I João,4, “Deus é Amor“. O clímax medieval de interpenetração do cristianismo com a cultura, da fé com a razão, é talvez a razão de ser do Ocidente e o critério pelo qual se deve avaliar o decurso da história intelectual. E esse curso tem por tema a desintegração do núcleo doutrinário da amicitia entre Deus e o homem. Essa desintegração degenera em revolta contra Deus como base da ordem imanente da sociedade. E a progressão de dogmas da salvação humana hermeticamente fechada à realidade transcendente prenunciam o fim da civilização ocidental.

Neste contexto, a doutrina da justificação pela fé surge como um ataque deliberado à amicitia e como o início de um processo de desintegração espiritual, como se observa no escrito Von der Freiheit eines Christenmenschen de 1520. A primeira parte trata de como, através da fé, o cristão pode libertar a alma da natureza que a aprisiona. A segunda lida com a subserviência do cristão à existência corpórea. A obra abre com uma antinomia: “O cristão é o senhor livre de todas as coisas a não está  submetido a ninguém, Um cristão é o servo de todas as coisas e está submetido a todos“. A fé liberta o cristão da corrupção da natureza. Mas ao traduzir a expressão paulina de Romanos 1;17, Justus autem ex fide vivit“, Lutero acrescenta o apenas: “Um cristão justo vive apenas pela fé“. Porque razão se pode afirmar que só a fé justifica? A Bíblia está dividida em duas partes; as leis do Antigo Testamento e as promessas do Novo. Aos que vivem sob a lei, as Escrituras ordenam para executar várias boas obras. Mas uma vez que a lei não confere a força para as executar, os mandamentos instilam no homem uma consciência da sua fraqueza. Se medirmos as nossas acções pelas tábuas da lei, perdemos confiança em nós, experimentamos a ansiedade, o medo de danação e finalmente, o desespero. Trata-se, afinal, de uma autobiografia. O homem que desespera fica pronto para receber a promessa: “Se te queres libertar das tuas paixões malvadas e pecados…crê em Cristo; crê e obterás; não creias e não obterás“. A promessa é a palavra revelada de Deus. Através do acto de fé, a “virtude da palavra“, die  Tugend des Worts torna-se uma propriedade da alma. Tudo o que o cristão requer é a fé pois o cumprimento dos mandamentos não é necessário ao justo. E ao libertar o homem dos mandamentos, a fé livra-o da angústia que decorre da impossibilidade de cumprir a lei.

Transparece nesta doutrina uma luta pessoal, tal como a conhecemos de outras fontes. A tentativa de obedecer à lei; o desespero do perfeccionista que não compreende os problemas do pecado; o medo da danação; a ansiedade de aniquilação; a convicção de que a natureza humana é irreparavelmente corrupta e que a salvação provém da descarga do pecado em Cristo. O tom poderá ser optimista mas a experiência espiritual é trágica. A descarga do pecado mediante a fé é apenas a convicção de salvação que consola a alma; esta fé não redime a natureza caída nem eleva o homem à amicitia com Deus através da Graça, como se comprova pela famosa notória expressão pecca fortiter, inserida na carta a Melanchton de 1 Agosto de 1521: “Sê um pecador e peca ainda com mais força (pecca fortiter) mas ainda mais fortemente procura ter fé e alegria em Jesus Cristo que é o conquistador do pecado, da morte e do mundo“. Este pecca fortiter não é decerto um apelo ao deboche. Mas exprime a resignação de que a natureza humana não pode ser redimida. A certeza da salvação através da fé, “mesmo que fornicássemos e assassinássemos mil vezes ao dia” é um prenúncio do que está para vir. A relação do homem para com Deus é de confiança. A amicitia degenerou no sentimento de confiança mútua, característico dos comportamentos da classe média. Tais fórmulas permitem a qualquer radical e sectário reclamar que está habitado pelo Espírito. Pessoalmente, Lutero permaneceu firme na convicção que uma nova terra e novos céus estariam além do mundo. Nada que o homem fizesse na esfera natural poderia afectar a salvação da alma, positiva ou negativamente: e a justificação pela fé abrange só a “alma”: não afecta o velho Adão.

No que se refere à segunda parte da antinomia, sobre a esfera natural, surge primeiro a afirmação que só a fé salva; as obras nada contribuem. Mas como, apesar de tudo, o homem vive neste mundo e governa pelo menos o seu corpo e embora tais comportamentos não façam o homem mais justo, recomenda-se a ascese e a rotina do trabalho diário. Mas então porque razão ser justo ? O justo deve viver justamente por amor do Deus que o salvou. Este tipo de amor de Deus segue-se à justificação pela fé; não é o amor da amicitia entre Deus e o homem. É antes uma gratidão, como se depreende do comentário a Gálatas: “Hoc sola fides apprehendit, non caritas quae quidem fidem sequi debt, sed ut gratitudo quaedam“. Enfim, surge uma especulação sobre o paraíso que considera não ser um lugar de ócio, mas um espaço no qual o homem tem obrigações sociais a cumprir. Em conclusão, “Um cristão não vive sózinho, mas em Cristo e com o seu próximo; em Cristo pela fé, e com o seu próximo através do amor“.

Tais sugestões acerca da esfera humana de existência são um conjunto de argumentos mais que uma doutrina, mas têm profundas consequências antropológicas. A ruptura profunda entre a alma e a existência corpórea adquiriu um movimento próprio na filosofia moderna de Descartes a Kant. E já Lutero concebe a justiça da alma de acordo com uma moralidade que ignora as condições concretas de existência. Está à vista o desenvolvimento da sua visão de natureza profana corrupta para uma psicologia das motivações que concebe a consciência sem orientação para um bem supremo. Esta é uma das marcas luteranas na consciência europeia. A justificação pela fé abrange apenas a alma; o homem e a sociedade não são transfigurados de modo fantasista num novo reino histórico. Belo realismo . Mas quando a fé se quebra e ao pseudo-realismo luterano se junta o milenarismo marxista, o  resultado é muito diferente. Se o mundo está corrompido sem salvação; e se o reino da liberdade não pode ser a liberdade cristã da alma, a ser aperfeiçoada num outro mundo, ou a transfiguração gnóstica do espírito que mora no homem. então mais não resta do que justificar o homem através da revolução. O sola fide transforma-se no “Só a revolução vos salva” de Marx.

A inconsistência teórica, contudo, permitia a Lutero ressalvar a ideia de um paraíso terrestre. Polemiza contra a justificação pelas boas obras. Na realidade, jamais cristão algum defendera essa posição mesmo que considerasse o seu cristianismo quase perfeito por assentar no cumprimento de certos requisitos. Considera que na justificação não existe obra da lei, nem existe amor: “Se a nossa fé fosse formada pelo amor, então eu teria de tomar em consideração as nossas obras“. A intenção parece ser a de restringir o amor a um princípio imanente constitutivo da ordem social. Em Acerca das Boas Obras escreve que se uma obra é boa ou má não depende de critérios éticos: “Obras más jamais fizeram um homem mau; o malvado é que faz as más obras“. A sociedade dos sacerdotes universais, justificados na sua existência natural em Cristo e amando o próximo habita o reino paradisíaco de amor transfigurador. E assim a doutrina das boas obras, suporta a ideia luterana do estado cristão. Todas as ocupações têm o seu lugar na sociedade cristã. Tal doutrina, sobretudo após a intensificação de Calvinismo, tornar-se-á a grande força motora das sociedades Protestantes para a realização do paraíso progressivo. É, aliás, uma concepção conservadora, não-milenarista e não-revolucionária. Com a atrofia da fé, tal concepção degenera na prática em sociedade de bem-estar sem cultura do espírito nem do intelecto. Se a frágil ligação da fé Cristã for dispensada, o amor imanente torna-se no altruísmo de Comte e na filantropia dos seus sucessores positivistas.

Que aconteceu à ética ? Admitindo ser correcto que o justo procede sempre bem, não será excessivo afirmar que as obras iníquas não fazem um homem malvado ? E que só quem age por gratidão para com Deus e não por resposta à graça divina se salva? E os pagãos não tinham virtudes ? Agostinho era mais tolerante ao aceitar as virtudes dos romanos e Paulo dizia que Deus se revelara aos pagãos através da lei da natureza. A Lutero só interessa o ponto de vista pessoal. Este obscurantismo individualista desce sobre as problemáticas de toda a Ética, desde Aristóteles a Tomás. A decisão pessoal tudo resolve: “Cada um pode notar e dizer a si mesmo quando pratica o bem e o mal. Se o coração confiar que agrada a Deus, a obra é boa, mesmo que se trate de uma coisa tão pequena quanto colher uma palha. Se a confiança estiver ausente, ou se ele duvida, a obra não é boa“. Neste coração que tudo resolve, vemos prenunciada a consciência de Kant. Mas a ética da consciência é surpreendentemente conformista e conservadora. Pode ser preenchida  com a aceitação das convenções e a ordem concreta da sociedade. O coração até sabe que uma taxa de juro superior 20% não é cristã.

§ 7 O Princípio do Fim

Em 1520, Lutero atingira o cume das suas capacidades. A partir de então as circunstâncias obrigaram-no a escrever cada vez mais e a dizer cada vez menos com tantas modificações que acabava por contradizer posições anteriores. Já não é a história de uma doutrina mas a de um homem que está a inaugurar um período de mais de 100 anos de revoluções e guerras religiosas.Von weltlicher Oberkeit wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei de 1523 é, talvez, a sua mais detalhada exposição das ideias políticas e que, como o título indica, lida com a autoridade temporal. Em alguns territórios alemães (Meissen e Baviera por exemplo) fora proibida a tradução do Novo Testamento e as pessoas intimadas a entregar os exemplares que possuíam. Aconselha os seus fiéis a desobedecer às leis e a sofrer como os mártires. Para  se justificar expôs a doutrina da instituição divina da autoridade temporal e a obrigação do cristão em desobedecer civilmente se a autoridade prevaricasse. A argumentação parte de Romanos,13,1 e ss., epístola endereçada a uma comunidade romano-cristã, vivendo sob autoridades pagãs, e a que um pouco de ordem nas suas más inclinações e atitudes apenas faria bem. No Apelo de 1520, considerara, em continuidade com a tradição medieval, que a função governamental se tornara uma das funções carismáticas do corpo místico; o estado cristão coincidia com a nação; a nobreza alemã podia ser chamada para levar a cabo a reforma nacional-cristã. As ideias de 1520 eram ainda reforma. Três anos depois tudo mudara. A individualização da experiência religiosa destruíra o equilíbrio entre os poderes carismáticos temporal e espiritual. O governante é um não-cristão que persegue os bons cristãos luteranos. Deve invocar-se a nova autoridade espiritual contra o poder temporal que se tornou não- cristão. Os fiéis devem seguir a Bíblia contra a Igreja e seus concílios. O poder espiritual tornara-se o Anticristo, o temporal era tirânico, o indivíduo estava entregue a si próprio. Situação insuportável? Mas levou mais de 100 anos a ser estabilizada. Neste sentido, 1523 é o fim da Idade Média.

Ao destruir-se o equilíbrio entre autoridades institucionais espiritual e temporal,  todos os homens pertencem quer ao Reich Gottes (os fiéis) quer ao Reich der Welt cuja espada pune os actos malvados. Os cristãos não carecem da espada porque vivem em paz; mas devem respeitar o poder da espada porque é útil ao seu próximo. E assim é possível satisfazer dois senhorios, o reino de Deus e o reino do Mundo. Infelizmente não é fácil satisfazer a dois senhores. A civitas Dei e a civitas terrena de Agostinho não são reinos no tempo. Na história concreta existe Igreja e império. A Igreja representa a Civitas Dei mas boa parte dos seus membros pertencem à civitas terrena. A salvação é um dom divino imperscrutável. Lutero regressa ao significado de Tyconius. A ideia de Igreja é destruída pela doutrina que só a fé salva. Ser cristão é comprar a Bíblia de Lutero e seguir a consciência. A civitas dei torna-se demasiado fácil e visível. Ora a consciência de ser bom Cristão é muito fácil de surgir. Se aparece alguém que se considera bom cristão e que só pratica iniquidades que se lhe pode responder ? E se for um movimento de massas que pedem a abolição da autoridade temporal porque o reino de deus já chegou ? Poderiam sobrevir abusos da liberdade evangélica. A solução era remeter os abusadores para o redil do governo temporal. Mas se o governo temporal age mal ? Se interfere com os cristãos e os proíbe de ler as Bíblias que Lutero traduzira ? Deverá o cristão então resistir ? Em resumo, não há solução.

Quando a ordem institucional destruída fica à mercê do decisisonismo da consciência individual é a guerra de todos contra todos. A nova ordem terá que ser imposta às consciências rebeldes. Esta é origem da razão de estado, aceite pelas Igrejas. Mas de momento é só o princípio. A liberdade evangélica significava, por exemplo, o que vinha no III dos Doze Artigos dos servos camponeses revoltados(1525) um documento de inegável grandeza humana: “Tem sido costume até agora que os homens nos possuam como sua propriedade; e isto é lamentável vendo que Cristo nos redimiu a todos com o precioso derramamento do seu sangue, aos humildes bem como aos grandes, sem excepção de ninguém. Portanto é conforme às Escrituras que sejamos livres e assim o queremos ser.” Que respondeu Lutero ? “Isto é tornar a liberdade cristã uma realidade totalmente carnal. Não tiveram também escravos Abraão e outros patriarcas ?.Este artigo tornaria todos os homens iguais e converteria o reino espiritual de Cristo num reino mundano e externo; e isso é impossível porque um reino mundano não pode ficar em pé a menos que nele exista a desigualdade, de modo a que uns sejam livres, outros presos, uns senhores e outros súbditos“. Os camponeses não o escutaram, seguiram outra interpretação das Escrituras e o seu coração tomou a decisão da revolução social violenta. Em 1523 aconselhara no escrito Von weltlicher Oberkeit : “A heresia é um assunto espiritual que não pode ser cortado com o ferro, queimado com o fogo ou afogado em água“. Em 1525 pediu aos nobres e aos cavaleiros para massacrar os heréticos. Os cavaleiros não se fizeram rogados. Foi o fim do sonho da Reforma através da palavra. Lutero viveu ainda 20 anos. Mas nada mais tinha para dizer. Em cerca de oito anos criara ideias decisivas para o decurso da história da consciência moderna e perante as quais o cisma Protestante é quase secundário.

1. Destruíra o núcleo da cultura espiritual cristã ao atacar a doutrina da fides caritate formata. Reduzira a fé a um acto de confiança ao retirar-lhe a intimidade da graça, sempre exposta às tentações do orgulho e da soberba. A consciência empírica da justificação pela fé cria uma ruptura na natureza humana.

2. Destruíra a cultura intelectual ocidental ao atacar a Escolástica aristotélica. Se o esplendor medieval foi escurecido pelas lentes torpes dos modernos, parte da responsabilidade deve-se a Lutero. A sua atitude anti-filosófica criou o padrão depois agravado por sucessivas gerações de intelectuais Iluministas, positivistas, marxistas e liberais.

3. A justificação sola fide arruina o equilíbrio da existência humana. A ideia do paraíso de amor industrioso transferiu a ênfase da vita contemplativa para a ideia de realização humana através de um trabalho e de um serviço útil. O homem confia em Deus; depois vai à vida. No nosso tempo, esta atrofia da cultura intelectual e espiritual degenera no pragmatismo do sucesso.

4. Fala-se de Lutero como de alguém que possuía as virtudes e os vícios típicos do alemão. Mas se pensarmos, para só referir teólogos, em Alberto Magno, Eckhardt, Tauler, Nicolau de Cusa e o anónimo de Frankfurt, então ele nada tinha de germânico. Criou certamente um tipo humano: o revoltado voluntarista que deseja impor a sua razão como o centro da ordem institucional.

A sua obra é a manifestação de uma personalidade bizarra cuja força vital o faz romper com a história e lançar-se sòzinho contra o mundo. O seu apelo à acção directa contrasta com o contemptus vulgi de Maquiavel, o ascetismo e a pleonexia do intelectual de Erasmo e a ironia jocosa e amargura diplomática de Moro. Perante a força dramática da vontade luterana de violentar o juízo da história,tais autores fazem figuras de pobres revoltados. Força, porém, não é sinónimo de grandeza e não se pode pensar à maneira dos liberais do séc XIX que o sucesso seja sinal de valor. O grande indivíduo é um sintoma da ruptura da civilização. Por outro lado, os críticos de Lutero costumam ver a desordem espiritual e as carências do seu temperamento mas esquecem a degradação das tradições por acção de instituições e pessoas que já quase só representavam os defeitos. Ora as revoluções só se desencadeiam se houver condições de resposta das massas. No início da Reforma, a tradição degradara-se a tal ponto que um número cada vez maior de pessoas se sentia desligada de qualquer corpo místico. O indivíduo estava disponível para a violência renovadora. Entre os aspectos mais negativos da acção de Lutero conta-se a irresponsabilidade do apelo à autonomia de interpretação das escrituras e ao homo spiritualis. Faltava-lhe intuição intelectual e imaginação para ver as consequências. Mas esta deficiência que o cegava na teoria, robustecia a capacidade de agir; não entendia os enormes obstáculos iria criar. No aspecto positivo,  era um observador excepcional e um talento administrativo. Conhecia os males do seu povo; tinha a moralidade e o bom senso de os aconselhar a diminuir as suas dependências; estimava os seus compatriotas: e conhecia perfeitamente o animal em que o homem se transforma se não for vigiado. Tinha todos os requisitos para ser um bom ministro num estado social-democrata. Mas passou à história convencional como o reformador da religião cristã.

BIBLIOGRAFIA:

Joseph Denifle, Luther und seine Entwicklung, 2 vols., 1904-6

Jacques Maritain, Trois Réformateurs, 1923

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