A Misericórdia Pode Prescindir da Fé? Santo Tomás de Aquino e o Sínodo das Famílias

Quem acompanha os debates que antecedem o Sínodo ordinário das famílias, tem a sensação de que há atualmente dois grupos que defendem soluções pastorais diversas: uma pretende ser repleta de tolerância e misericórdia, e busca a aproximação das pessoas a fim de cuidar de suas feridas; a outra não deixa de acentuar a centralidade da fé e afirma que a ação pastoral da Igreja se funda na sua fé. Pode parecer assim que misericórdia e fé se opõem, ou que uma possa prescindir da outra. Será isso verdade? Para responder a essa questão é preciso esclarecer os significados de “misericórdia” e de “fé”. Santo Tomás de Aquino, único teólogo recomendado nominalmente como mestre da fé pelo Concílio Vaticano II[i], pode colaborar com a discussão atual, em pleno espírito de comunhão com a Igreja[ii].

Santo Tomás trata a misericórdia em relação com a justiça divina em S. Th., I, q. 21; para ele, a misericórdia é uma bem-aventurança (I-II, q. 69) e uma virtude (II-II, q. 30).

Em S. Th. II-II, q. 30 Santo Tomás inicia sua reflexão com a definição de Santo Agostinho: “a misericórdia é uma compaixão do nosso coração pela miséria alheia, que nos leva a socorre-la, se nos é possível” (Santo Agostinho, Civ. Dei IX, 5). E lembra que a palavra misericors significa ter o coração compassivo pela miséria do outro[iii].

Então ele esclarece que a miséria se opõe à felicidade, uma vez que a essência da felicidade é “ter o que se quer e não querer nada de mal” (Agostinho XIII de Trin.). E a miséria consiste em sofrer o que não se quer. Santo Tomás esclarece que há três maneiras de querer algo (e consequentemente de sofrer pelo que se quer):

a) Pode-se querer algo com um desejo natural: assim o homem deseja naturalmente ser e viver;

b) Também algo pode ser querido por uma eleição premeditada;

c) Pode-se querer algo, ainda, não diretamente em si mesmo, mas na sua causa (é o chamado voluntário indireto). Como alguém que deseja ingerir coisas nocivas: ao fazê-lo, de certo modo, deseja ficar doente.

Até aqui fica claro que a misericórdia é a compaixão pela miséria alheia, ou seja, por algum defeito do outro. Não se pode jamais ter misericórdia por um bem, tal como a fé. Se tem misericórdia pela miséria alheia, não por uma sua riqueza. E a dita miséria pode ser tríplice.

a) O que contraria o nosso apetite natural, tal como a doença e a proximidade da morte. Esse seria o motivo específico e primeiro da misericórdia;

b) Em segundo lugar, os males que suscitam mais misericórdia são os que se opõem a uma escolha voluntária do outro. Por isso são mais dignos de compaixão os males que são causados pela fortuna, como quando alguém deseja um bem e lhe acontece um mal. Isso seria o que hoje chamamos de “acidentes”, ou “tragédias”;

c) Entretanto, são mais dignos de compaixão os males que contradizem totalmente à vontade de quem os sofre. Por isso disse Aristóteles que “a misericórdia chega ao seu extremo nos males que alguém sofre sem merecê-lo” (Retórica).

Sendo assim, a misericórdia é gerada pelo mal que alguém sofre, não pelo mal que alguém causa, muito menos pelo bem que alguém faz. De fato, Tomás acrescenta (ad 1) que a culpa é, por sua natureza voluntária, e por isso não é objeto de misericórdia, mas de castigo. Às vezes, porém, a culpa traz consigo uma pena, ou seja, algo que contraria a vontade do pecador. Essa pena pode nos inspirar misericórdia, nunca, porém, a culpa. O misericordioso procura corrigir o pecado e os seus danos, não pretende jamais aceitá-lo ou justificá-lo. Fazer isso não seria misericórdia, mas crueldade.

Fica claro também que se tem misericórdia propriamente pela miséria alheia; não é possível ter misericórdia consigo mesmo. Em relação a nós mesmos, o mal não provoca misericórdia, mas a dor. Assim acontece quando quem sofre é uma pessoa especialmente unida a nós. Nesse caso, o mal que o outro sofre é como nosso, pois tendemos a considerar um amigo como um “outro eu”. Nesse caso, propriamente, não temos misericórdia deles, mas compadecemos com as suas desgraças como se fossem nossas (ad 2).

Portanto, a misericórdia é a compaixão pela miséria alheia, ou seja, pelos defeitos dos outros (S. Th., II-II, q. 30, a. 2), os quais nos entristecem e fazem sofrer na medida em que os consideramos nossos. Isso ocorre quando há verdadeiro amor, pois, o amor é uma força de união (S. Th., I, q. 26, a. 1: vis unitiva). Santo Tomás acrescenta que os mais inclinados à misericórdia são os anciãos e os sábios (S. Th., II-II, q. 30, a. 2). E Deus tem misericórdia pelos homens, não porque Ele possua algum defeito ou carência, mas porque lhes ama, considerando-os seus (ad 1).

A seguir, Tomás investiga se a misericórdia seja uma virtude, ou apenas certa emoção natural humana (II-II, q. 30, a. 3). Depois de reafirmar que misericórdia significa dor pela miséria alheia, diz que a dita dor pode ser um simples movimento do apetite sensível; nesse caso, seria o que os medievais chamavam de “paixão” (algo que se padece, que se sofre espontaneamente). E a paixão em si mesma não é virtude.

Entretanto, a misericórdia também pode ser um movimento do apetite intelectivo (da vontade), enquanto sente repulsa pela infortuna alheia. Nesse caso, a razão pode assumir e integrar o movimento do apetite inferior (a paixão). Como bem disse Santo Agostinho, o misericordioso sente dor pelo mal alheio e procura, na medida do possível, eliminá-lo (Civ. Dei IX, 5).

As paixões são a matéria das virtudes, ou seja, aquilo que é transformado por elas. A virtude moral, de fato, é “a forma que fica impressa pela razão como um selo nas tendências do homem” (De virtutibus in communi, a. 9). Nas virtudes se realiza a síntese que eleva todos os aspectos do ser humano a uma vida harmoniosa. O virtuoso é aquele que tem unidade de vida e é interiormente forte. Enquanto o homem vicioso é fraco e disperso. Na alma do vicioso, existe uma guerra civil, disse Aristóteles (Ética a Nicômaco, 1166b 19).

Tomás de Aquino citava então Santo Agostinho: “Este movimento da alma [a misericórdia do apetite sensível] serve à razão quando de tal modo se pratica a misericórdia deixando a salvo a justiça, seja socorrendo o indigente, seja perdoando o arrependido” (De Civ. Dei IX). E como a essência da virtude consiste em regularizar os movimentos da alma pala razão, a misericórdia é virtude, e não somente uma emoção.

A misericórdia pode ser considerada, pois, como paixão ou como virtude. Mais adiante Santo Tomás alerta que a misericórdia enquanto paixão não regida pela razão pode por obstáculos à deliberação racional, fazendo-a desviar da justiça ((S. Th., II-II, q. 30, a.3 ad 1). Isso quer dizer que a misericórdia pode se opor à justiça apenas se for tomada como uma emoção (paixão), não assumida pela razão. Se parecer contrária à razão, a misericórdia estará apenas no que há de mais baixo no ser humano (sensibilidade), e reclamando a harmonização racional.

A misericórdia no seu sentido pleno, enquanto virtude humana, não pode se opor à razão, muito menos à justiça ou à fé. Segundo Santo Agostinho, o amor verdadeiro “é o aderir à verdade para se viver na justiça” (De Trin., 8, 7, 10). Em Santo Agostinho é impensável separar amor e verdade, justiça e misericórdia, doutrina e pastoral. Seu trabalho pastoral foi levar a verdade de Cristo aos homens. Para ele, a doutrina cristã não era um peso insuportável, mas o resplendor da beleza divina, o qual liberta o homem das suas escravidões intelectuais e morais. Antes de sua conversão, Agostinho disse: “ó Verdade, Verdade, como suspirava por ti, desde as fibras mais íntimas do meu coração” (Confissões). E logo depois de seu encontro com Cristo escreveu: “Parece-me que se deva reconduzir os homens à esperança de encontrar a verdade” (Ep. 1,1).

Em outro texto da Suma (I, q. 21, a. 2), Tomás de Aquino se pergunta se a justiça de Deus seja a o mesmo que a verdade. Começava citando o versículo bíblico “A misericórdia e a verdade se encontraram” (Sal. 85, 11) e comentava dizendo que “verdade” aqui equivale a “justiça”.

De fato, verdade é a adequação entre intelecto e as realidades. A razão divina, que é causa de tudo, se relaciona com as coisas como sua regra e medida. As coisas são verdadeiras na medida em que imitam as ideias pré-concebidas no intelecto divino. O intelecto humano, por sua vez, toma seu conhecimento das coisas naturais, sendo elas a regra e medida das verdades conhecidas pelos homens. A verdade humana se dá quando nosso intelecto se adequa as coisas. E a verdade divina está nas coisas se adequarem ao seu intelecto.

Por sua vez, a justiça de Deus seria a ordem das coisas adequada à sabedoria divina. Isso pode ser chamado de lei, assim como de verdade. A justiça seria a verdade das coisas adaptadas à mente divina. A justiça divina seria uma lei reguladora presente no intelecto divino; enquanto está presente no mandato, pelo qual se regulam as coisas segundo a lei, está na vontade de Deus.

Sendo a justiça divina a ordem que Deus imprime nas coisas, é evidente que em tudo o que Deus faz está presente a sua justiça. Mas estaria também presente a misericórdia? Santo Tomás o afirma, a partir da afirmação bíblica: “Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade” (Sal. 25, 10). A misericórdia divina não consiste no entristecer de Deus com nossos defeitos, pois Ele é perfeito e entristecer é algo impossível para Deus; porém, sua misericórdia consiste em eliminar os nossos defeitos (S. Th., I, q. 21, a. 3).

Deus age, portanto, sempre com justiça, pois tudo o que faz nas coisas criadas, o faz com ordem e proporção (a. 4). Entretanto, a justiça pressupõe a obra de misericórdia, na qual se funda. Sem uma benevolência original, ou seja, sem a criação, Deus não poderia agir com justiça para com os seres criados. Santo Tomás o ilustra com um exemplo: ter mãos é algo devido ao homem por ter alma racional; ter alma racional lhe é devido pelo fato dele ser homem; ser homem, por sua vez, lhe é devido exclusivamente pela bondade divina.

Sendo assim, em toda obra divina, aparece a misericórdia de Deus como sua raiz. E a eficácia da misericórdia se mantém em tudo. Ela é a causa primeira de todas as coisas, a qual age com mais força do que a causa segunda (nesse caso, a justiça). Além disso, o que é devido a alguma criatura, Deus lhe dá com maior generosidade do que é estritamente exigido. Para se ter uma ordem justa, é preciso muito menos do que a bondade divina dá.

Em S. Th., I, q. 21, a. 3, ad 2, Tomás diz que Deus, ao obrar misericordiosamente, não age contra a justiça, mas acima dela. Por exemplo: se alguém deve cem moedas e paga com duzentas não age injustamente, mas com misericórdia. O mesmo acontece quando se perdoa as ofensas recebidas. De fato, quem perdoa algo, dá algo. De modo que a misericórdia não anula a justiça, mas é a sua plenitude. Nesse sentido, afirmou São Tiago (2, 13): a misericórdia faz sublime o juízo.

A misericórdia humana é, portanto, uma compaixão pela miséria alheia que procura superá-la, sem jamais se opor ou prescindir da fé. Ela nasce da fé e é o seu alimento. A fé é entendida por Santo Tomás a partir da afirmação da Carta aos Hebreus: “É a substância do que se espera, argumento das realidades que não se vê”. O Aquinate define o ato de fé como “ato do intelecto determinado ao assentimento do objeto sob o império da vontade” (S. Th., II-II, q. 4, a. 1). Pode ser entendido então como o hábito da mente pelo qual se inicia em nós a vida eterna, fazendo assentir o intelecto nas coisas que não vê. Em palavras de Pseudo-Dionísio, o Areopagita: “a fé é o cimento imóvel dos crentes que lhes assenta na verdade e lhes mostra a mesma” (De Div. Nom.).

A fé é uma virtude teologal, pela qual o homem adere a Deus, movido pela vontade que recebe o influxo da graça. A fé alimenta a esperança, a caridade e a misericórdia. Santo Tomás afirma que toda a vida cristã se resume na misericórdia pelos outros quanto às obras exteriores (q. 30, a. 4). Porém, o sentimento interno da caridade que nos une a Deus está por cima tanto do amor como da misericórdia pelo próximo (ad 2). E essa caridade se funda na fé. De fato, a caridade nos faz semelhantes a Deus, unindo-nos a ele pelo afeto. Por isso é melhor do que a misericórdia, que nos faz semelhantes a Deus no plano do agir (ad 3).

O Documento preparatório para o próximo Sínodo dos bispos reconheceu muito bem que o problema atual do nosso mundo não é a crise das famílias, mas a crise da fé[iv]. A dita crise não pode fazer as pessoas pensarem que a fé é uma meta inalcançável, que as suas verdades são um fardo para o homem contemporâneo. Por isso, em 2012, o Papa Bento XVI disse “o matrimônio é chamado a ser não apenas objeto, mas o sujeito da nova evangelização”[v].

De fato, se a fé for novamente anunciada com toda a sua clareza e frescor, certamente a graça de Deus fará surgir famílias saudáveis que darão muitos frutos de testemunho de santidade para Igreja e para o mundo. Um grande pastor da História da Igreja, Santo Agostinho, disse numa época cética como a nossa: “Parece-me que se deva reconduzir os homens à esperança de encontrar a verdade” (Ep. 1,1), e a Igreja deve continuar com ardor a mesma tarefa.

Pe. Anderson Alves

[i] CONCÍLIO VATICANO II, Decreto Optatam Totius sobre a Formação Sacerdotal, n. 16: “[…] Depois, para aclarar, quanto for possível, os mistérios da salvação de forma perfeita, aprendam a penetra-los mais profundamente pela especulação, tendo por guia Santo Tomás, e a ver o nexo existente entre eles.”

[ii] Numa entrevista por ocasião dos dois anos de pontificado, o Papa Francisco falou sobre a possibilidade de se dar a comunhão aos divorciados, o que seria uma prática de “misericórdia” para alguns, mesmo em dissonância com a prática atual. Sobre isso, o Papa disse: “Bem, a família está em crise. Como integrar na vida da Igreja as famílias ‘replay’? Esta segunda união às vezes está fenomenal… enquanto a primeira foi um fracasso. Como reintegrar? Que vão à Igreja. Então simplificam e dizem: ‘Ah, daremos a comunhão aos divorciados!’ Com isso não se resolve nada. Aquilo que a Igreja quer é que você se integre na vida da Igreja. Mas alguns dizem: ‘Não, eu quero comungar e basta!’ Uma condecoração, uma honraria. Não. Você deve se reintegrar.” Cfr.: http://www.osservatoreromano.va/it/news/due-anni-di-pontificato

[iii] O substantivo latino misericors significa aquele que reage com o coração à miséria alheia. Seria um dos aspectos da sensibilidade humana. Na Vulgata, isso é próprio de Deus. O termo aparece 273 vezes o termo, mais 137 o verbo misereor e 31 o adjetivo misericors. Quase sempre o autor é Deus. A misericórdia seria um atributo divino. Em textos provenientes do original hebraico, o termo aparece 369 vezes, provenientes de três raízes hebraicas: rahâm, hânan e hâsad. A primazia é da primeira forma, da qual deriva o substantivo plural rahamim, traduzido por compaixão. Em singular, temos o termo rehem, que designa o útero da mulher. A misericórdia representa uma característica materna de Deus, assim como a justiça simboliza uma característica paterna. Ambas não se excluem, mas se complementam. De fato, “misericórdia-justiça” aparece em todas as seções da bíblia judaica, pode simbolizar os traços paternos e maternos de Deus. Cfr. D. Cerbelaud, Misericordia, in J. Y. Lacoste (org.), Dizionario critico di teologia, Città Nuova, Roma 2005, pp. 851-853.

[iv] Sínodo dos bispos, Lineamenta, n. 5: “A isso se acrescenta também a crise da fé que tocou tantos católicos e que frequentemente está na origem das crises do matrimônio e da família”. Cfr: http://www.vatican.va/roman_curia/synod/documents/rc_synod_doc_20141209_lineamenta-xiv-assembly_it.html

[v] Cfr.: Bento XVI, Homilia de abertura do Sínodo dos bispos. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/homilies/2012/documents/hf_ben-xvi_hom_20121007_apertura-sinodo.html

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