Comentário Exegético – Solenidade de Cristo Rei

EPÍSTOLA (Cl 1, 12-20)

(Pe. Ignacio, dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: Paulo está em Roma preso e recebe notícias de Epafras [=simpático, contração de Epafrodito], por ele convertido em Éfeso, à fé cristã e provável fundador da igreja de Colossas (Cl 1, 7 e 4, 12). Colossas era antiga cidade de Frigia na península de Anatólia [hoje Turquia asiática] situada a 18 km de Laodiceia. Durante o século I seu tamanho e importância estavam muito reduzidos, porque Laodiceia foi declarada capital do distrito. Mais tarde entrou em decadência, devido talvez a um terremoto. Com o nome de Konia foi famosa pela aparição medicinal do arcanjo Miguel em Chairotopa numa fonte, de modo que os que se banhassem nela, invocando a Trindade e a Miguel, fossem curados. A carta paulina foi sem dúvida escrita entre os anos 57 a 62. Paulo não tinha visitado a cidade, conforme declara a Filemon. A ocasião da carta é uma série de doutrinas heréticas procedentes dos judeus cristãos, entre elas algumas não muito boas sobre certas ideias que os judaizantes de Colossas, Laodiceia e Hierápolis difundiam com base na moralidade essênica e o gnosticismo e sincretismo gregos. Diversas potestades angélicas tomavam o lugar de Cristo, tanto na criação como na redenção. Contra essas ideias heréticas Paulo reclama o único poder supremo de Cristo, como criador, anterior a sua encarnação e a singular mediação, como redentor. Daí parte o apóstolo para uma série de consequências morais: a  união com Cristo é o princípio da vida nova dos cristãos, a família cristã e o espírito apostólico próprio de todo cristão.

AÇÃO DE GRAÇAS: Agradecendo ao Pai que nos fez aptos para a parte da sorte dos santos na luz(12). gratias agentes Patri qui dignos nos fecit in partem sortis sanctorum in lumine. AGRADECENDO: [eucharistountes<2168>= gratias agentes] do verbo eucharisteö cujo significado é estar agradecido, dar graças, ou agradecer. Tratando-se de uma oração, vemos como Jesus, tomando os sete pães e os dois peixes, deu graças antes de reparti-los a seus discípulos (Mt 15, 36). No nosso caso, é melhor traduzir por agradecer. FEZ APTOS [ikanösanti <2427> =dignos fecit] do verbo ikanoö com o significado de fazer apto, equipar com poder suficiente para desempenhar um ofício ou um dever. É um particípio de aoristo que neste caso devemos traduzir pelo perfeito: que nos fez aptos  seria a melhor tradução. Capaces é a tradução espanhola, idôneos a RA evangélica, capaci a italiana, fit a inglesa e dignos a Vulgata. Segundo a outra ocasião em que encontramos ikanoö, em 2 Cor 3, 6, Paulo declara que Deus lhe fez ministro capaz de um novo testamento. PARTE [meris<3310>=pars] com significado de parte, porção, percentagem, ou cota; optamos por parte. SORTE [klëros <2819>=sors]; Klëros era um  objeto, pedra, casco de cerâmica, ou pedaço de madeira para lançar a sorte; e daí a mesma sorte ou prêmio que se obtém com o lançamento dos objetos antes citados. A consequência desse quinhão do qual formamos parte é que seremos contados entre os SANTOS NA LUZ. Esta expressão é única. Luz metaforicamente implica a essência de Deus, que se mostrou no monte como nuvem de luz (Mt 17, 5);  e, como vida humana, Cristo é a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo (Jo 1, 9). Assim, o próprio Jesus  exclama, durante as festas dos sukoth ou tabernáculos: eu sou a luz do mundo (Jo 8, 12). Jesus chama a seus discípulos luz do mundo (Mt 5, 14); e como filhos da luz, os compara com os filhos deste mundo, a quem considera mais prudentes na sua geração. Paulo fala aos efésios que antes eram trevas, mas agora são luz no Senhor e, portanto devem andar como filhos da luz (Ef 5, 8). De tudo isso se deduz que Paulo, como parte do grupo dos apóstolos, foi escolhido como luz do mundo (Mt 5,14) e de modo especial do mundo pagão. Paulo usa o plural majestático que logicamente se refere a si mesmo, mas também é válido para os fieis a quem se dirige.

O RESGATE: O qual nos resgatou da autoridade das trevas e transladou para o reinado do Filho de seu amor(13). Qui eripuit nos de potestate tenebrarum et transtulit in regnum Filii dilectionis suae. RESGATAR [errysato <4506>=eripuit] do verbo ryomai, com o significado de resgatar, libertar, como vemos em Mt 27, 42: Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora. AUTORIDADE [exousia<1849>=potestas] DAS TREVAS [skotos<4655>=tenebrae] Autoridade ou poder o que implica domínio. Skotos tanto em latim como em português, trevas é plural. Também em espanhol [tinieblas] embora o significado fundamental é escuridão, falta de luz. Na linguagem metafórica do NT trevas é oposta à luz do Logos: a luz veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a luz (Jo 3, 19). Como poder das trevas encontramos no NT três versículos: Lc 22, 53: aos dirigentes judeus,     Jesus disse: esta é vossa hora e o poder das trevas. Paulo fala duas vezes em suas cartas: sobre os governadores [kosmokratores] destas trevas (Ef 6, 12) em que não parece indicar poderes supranaturais, mas senhores do mundo; e finalmente, neste versículo, em que aparentemente é o diabo o senhor das trevas, como vemos também em At 26, 18: Paulo narra sua conversão e diz que o Senhor lhe escolhe para enviá-lo aos gentios para abrir os olhos deles para que se convertam das trevas para a luz e da potestade [exousia] de Satanás. Podemos, pois, afirmar que essa autoridade, ou melhor, poder, é o poder diabólico que dominava o mundo pagão através dos diversos ídolos e costumes depravados, que nele exerciam o domínio supremo com a conivência das autoridades romanas. Desse império das trevas fomos resgatados e conduzidos para o reino do filho, o amado de Deus (Mt 3, 17 e 9, 7); na realidade, Filho de seu amor que em termos bíblicos indica o primogênito ou unigênito, como afirma João (1, 14 e 1, 18).

REDENÇÃO: No qual temos a redenção mediante seu sangue, a remissão dos pecados (14).In quo habemus redemptionem remissionem peccatorum. Este versículo é uma clara definição do que nós chamamos de redenção. REDENÇÃO [apolytrösis<629>=redemptio] preço do resgate em geral de um escravo. Seria melhor falar de resgate, palavra que todos entendem; e esse resgate foi pago por Cristo por meio do seu sangue na cruz. Que dívida foi paga? Evidentemente com a REMISSÃO  [afesis <859>=remissio] se indica uma dívida que, neste caso, foi contraída pelo pecado dos homens, a começar pelo original de Adão. Pecado [hattah <02403> =amartia=peccatum],  em hebraico é o mesmo que dívida mashaah<04859>=debitum como vemos em Mt 6,12 donde o grego ofeilëma <3783>=debitum: Perdoa-nos as nossas dívidas [ofeilëmata] assim como nós perdoamos aos nossos devedores. Assim, pois, com o sangue de Cristo na cruz foram perdoadas as dívidas [os pecados] contraídas pelo homem através da História, desde Adão até o último homem nascido. Nisso consiste essencialmente a redenção, que o grego designa como resgate, pois foi pago um preço por uma dívida.

SOBRE CRISTO: O qual é imagem do Deus invisível, primogênito de toda criatura(15). Qui est imago Dei invisibilis primogenitus omnis creaturae. IMAGEM [eikön<1504>=imago] é também figura, efígie como era a do César na moeda do denário (Mt 22, 20). Porém Jesus, o Cristo, como Filho, era a figura visível do Deus invisível (2Cor 4,4 e Col 1,15) e os cristãos são toda criatura chamados a ser imagem do Filho de Deus (Rm 8, 29),e o varão imagem da glória de Deus (1Cor 11, 7). E sendo Cristo primeiro que é imagem de Deus, ele é considerado PRIMOGÊNITO [prötotokos<4416>=primogenitus] de toda CRIATURA [ktisis <2937>=creatura]. Como afirma Orígenes, ele não é criado, mas de toda a natureza criada é primogênito. Em Rm 8, 29 Paulo afirma que a predestinação é para conformar os bemaventurados à imagem de seu Filho a fim de que Ele seja o primogênito de muitos irmãos.Também é o primogênito dentre os mortos para ter em tudo a primazia (Cl 1, 18). Ktisis pode ser o ato de fundação ou edificação de uma casa, a criatura, e a natureza como criação. Depende do contexto. Aqui, se supõe que seja criatura e não criação.

NELE TUDO FOI FEITO: Porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam senhorios, sejam principados, sejam potestades: todas por meio dele e para ele foram criadas (16). Quia in ipso condita sunt universa in caelis et in terra visibilia et invisibilia sive throni sive dominationes sive principatus sive potestates omnia per ipsum et in ipso creata sunt. Tomando como base a figura de Cristo, Paulo fala dos privilégios do mesmo em relação com Deus, com a criação e com a Igreja. Ele não só é o primogênito, mas nEle foram CRIADAS [ektisthë<2936>=condita] do verbo ktizö, com o significado de fazer habitável um lugar, fundar uma cidade e finalmente criar, originar, dar existência. E ao dizer NELE, isso significa a transcendência como modelo e como fim, motivo e realização de tudo que existe no Universo, que Paulo abrange dizendo coisas celestes e terrestres. Tudo foi criado POR ELE E PARA ELE dirá imediatamente [di autou kai eis auton=per ipsum et in ipso]. Disso deduzimos que Paulo acredita em seres invisíveis como são os anjos e demônios, coisa que no credo afirmamos. E o interesse de Paulo é colocar o Cristo acima de qualquer poder, tanto humano como de outra ordem superior, por isso ele enumera uma série de potestades como tronos, senhorios, principados e potestades. Também estes domínios e autoridades podem significar as diversas características dos domínios angélicos. Na realidade, o importante é saber que Cristo é tudo em todos (Cl 3, 11).

ANTERIOR: E ele é antes de todas as coisas e todas nele subsistem (18). Et ipse est ante omnes et omnia in ipso constant. Ainda não existiam os dogmas cristológicos, que firmaram a fé em Cristo como Deus encarnado; mas numa linguagem simbólica e modélica Paulo nos diz que ele existia antes de todas as coisas, exatamente como o próprio Jesus afirmou aos judeus: antes que Abraão existisse, eu sou (Jo 8, 58). Isto é o que Paulo diz quando afirma que ele é anterior a tudo. SUBSISTEM [synestëken <4921> =constant] do verbo synistemi, unir, integrar, compor, juntar, unificar, agregar. Geralmente a tradução é subsistir, ou seja, persistem, permanecem ou tem consistência. Significa que tudo depende dEle, de modo que sem Ele, não existiriam.

CABEÇA: E ele é a cabeça do corpo da Igreja, o qual é princípio, primogênito dentre os mortos para ele se tornar em tudo o primeiro (18). Et ipse est caput corporis ecclesiae qui est principium primogenitus ex mortuis ut sit in omnibus ipse primatum tenens. CABEÇA E PRIMOGÊNITO: [kefalë<2776>=caput] do CORPO [söma <4983> =corpus] da Igreja. É a base do chamado corpo místico de Cristo que Paulo descreve de modo mais detalhado  em Rm 12, 4-5 e 1 Cor 12, 12-27. Além do que os santos padres dizem sobre este mistério, hoje com o DNA podemos dizer que todo fiel, unido a Cristo pelo batismo tem o DNA de Cristo, assim como as células de um corpo têm o mesmo DNA que as distingue de um outro e as une ao único e próprio como partes de um todo. Pois todos somos conformes à imagem do Filho (Rm 8, 9). É a fé e a caridade com a seiva do Espírito que nos une e conforma com o Cristo, Filho de um único Pai, para termos um só Pai, um só Senhor e um mesmo Espírito, assim  como temos uma só fé e um só batismo (1 Cor 8, 6 e Ef 4, 6). E seguindo o esquema do  DNA, Cristo é como o zigoto inicial, o princípio do novo ser, e logicamente sendo o primeiro a ressuscitar se torna também primogênito dentre os mortos e como primeiro em tudo.

PLENITUDE: Porque nele pareceu bem habitar toda a plenitude(19). Quia in ipso conplacuit omnem plenitudinem habitare. PLENITUDE [plëroma<4138>=plenitudo] é a carga com a qual um barco está cheio, que além  do frete incluia marujos, velas, etc. Para Paulo o kosmos é cheio de Deus (1Cor 10, 26) e, conforme o uso da época, o designa com o termo de pléroma. Derivado de plëres, completo ou repleto, foi usado pelos gnósticos, significando a totalidade de tudo que era considerado divino e dessa substância derivavam-se os diversos seres intermédios ou eons. Usada essa palavra 12 vezes por Paulo, em suas epístolas, significa o conjunto de todo o Universo, criado por Deus e submetido à soberania de Cristo. Este é o total cumprimento das antigas profecias  (Rm 11, 25) e a plenitude dos tempos (Ef 1, 10), o cumprimento inteiro da vontade do Pai (Gl 5, 14) que opera o conjunto total das bênçãos, como fez por meio de Paulo (Rm 15, 19).  Na cabeça deste kosmos, ou pléroma de Deus, Paulo coloca Cristo, recapitulando em si todo o céu e a terra (Ef 1, 10) Pois em Cristo habita ou está incorporado todo esse pléroma de Deus, como vemos neste versículo. E é por essa plenitude divina que nEle se encontra, que pode realizar a pacificação, como vemos no versículo seguinte.

A RECONCILIAÇÃO: E por ele reconciliar todas as coisas nele, fazendo a paz por meio do sangue da sua cruz por ele, quer as sobre a terra quer as nos céus (20). Et per eum reconciliare omnia in ipsum pacificans per sanguinem crucis eius sive quae in terris sive quae in caelis sunt. Como pléroma da divindade, a Cristo pertence a autoridade  e poder de reconciliar todas as criaturas, inimigas de Deus desde o primeiro pecado. NEle e por meio dEle: Sendo que essa paz, foi conseguida na cruz, pelo sangue derramado como sacrifício. Nesse sacrifício pelo pecado, o Universo inteiro [quer o terrestre, quer o celeste] foi reconciliado com Deus.

EVANGELHO  ( Lc 23, 35-12)

CRISTO REI: DO ALTO DA CRUZ, REINARÁS

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: A agonia na cruz é o momento mais sublime da vida de Jesus como homem. É o seu sacrifício, que não só é acompanhado duma intensa dor, mas também duma profunda humilhação, que consiste em se desprender de todo contato com sua divindade e se mostrar na hora da morte como um simples mortal, um homem sofrido e humilhado, como um escravo castigado e não como um senhor dominador. Por isso, Deus se aproxima muito mais de todos nós na cruz infamante, assumindo toda nossa fragilidade e adotando o mais débil e frágil da natureza humana, num momento em que as forças e o sofrimento igualam todos os homens. E, não obstante, é nesse momento de fragilidade e abatimento em que Jesus morria, que o título dizia a verdade: Ele era por causa de sua cruz o rei dos judeus. Aceitá-lo como tal nesse momento paradoxal de sua vida, exige maior fé do que, vendo-o ressuscitado, confessar como Tomé: Meu Senhor e meu Deus! Esta foi a fé do bom ladrão, como vulgarmente falamos dele. A fé deste converso é um chamado para que nós vejamos, no Jesus da cruz, o verdadeiro Cristo, modelo de nossas vidas, sem ter que recorrer ao Jesus ressuscitado na Páscoa. A SOLENIDADE: No dia 11 de março de 1925  esta solenidade foi instaurada pelo papa Pio XI, querendo motivar os católicos a reconhecer, em público, que o mandatário da Igreja [e Igreja somos cada um de nós] é Cristo Rei. No dia 11 de dezembro desse ano Pio XI deu a conhecer uma carta encíclica, explicando as razões dessa sua eleição. Entre outras coisas, afirma: Podemos chamar de Rei a Jesus Cristo no sentido metafórico por sua Excelência que o exalta sobre todas as coisas criadas. Porém Ele reina nas inteligências dos homens porque é a Verdade da qual todos os homens necessitam beber e receber obedientemente. Reina sobre todas as vontades porque nele a Vontade está submetida à vontade divina e, também porque, com suas inspirações, influi em nossa livre vontade e a eleva a nobilíssimos propósitos. Finalmente é REI DOS CORAÇÕES porque com sua supereminente caridade e com sua mansidão e benignidade se faz querer  pelos homens de modo que ninguém tenha sido nem seja nunca tão amado como Cristo Jesus. Mas também em sentido estrito o título de Rei pertence a Cristo porque ele recebeu do Pai a potestade, a honra e o reino (Ef 1,20-21); pois sendo Verbo de Deus, em substância igual ao Pai, possui, como o Pai, o mesmo império supremo e absoluto sobre todas as criaturas. O Papa fala das três potestades atribuídas aos reis [executiva, legislativa e judicial] e que em Cristo são eminentes, pois abrangem toda a terra e todos os homens, e são prioritárias sobre qualquer outra potestade ou soberania. Já que como afirma Paulo Omnis potestas  a Deo (Rm 13,1): todo poder vem de Deus. O Papa termina, dizendo a razão pela qual instituiu a festa: não existe melhor meio para a instrução do povo cristão nas coisas da fé do que as festas anuais, muito mais eficazes que qualquer ensino ou magistério eclesiástico. Como causas negativas contrárias, o Papa fala da peste dos tempos modernos que é o Laicismo querendo substituir a religião de Cristo por uma religião natural, com certos sentimentos puramente humanos. É o que afirma no seu recente livro, Maçonaria em decadência, José Antônio Ullate: A raiz filosófica da maçonaria é o naturalismo, quer seja panteísta ou deísta: a eleição está pela razão natural, contra a fé sobrenatural. A maçonaria como instituição está em decadência, mas a maçonaria como doutrina adquire uma difusão quase universal; ou seja, a influência do naturalismo filosófico e o laicismo político.

OS ASSISTENTES: E estava a multidão olhando. Também os chefes junto com eles mofavam dele, dizendo: Outros salvou; salve-se a si mesmo se ele próprio é o Ungido, o escolhido de (o) Deus (35). Et stabat populus expectans et deridebant illum principes cum eis dicentes alios salvos fecit se salvum faciat si hic est Christus Dei electus. O POVO: Lucas fala dos que estavam presentes observando, enquanto Mateus e Marcos falam dos que passavam por lá. Ambas as coisas podem ser verdadeiras. Com isso se confirma que não foi o povo, o responsável, pelo menos principal, da morte de Cristo. Embora também o povo se uniu às mofas dos chefes, que Mateus e Marcos declaram ser os chefes sacerdotais [oi archiereis=summi sacerdotes]. AS ZOMBARIAS: Para Lucas, o motivo eram as curas produzidas por Jesus. Para Mateus e Marcos, a causa da mofa era a reivindicação de Jesus de reconstruir o templo em três dias após a destruição do mesmo. Também ambos os sinóticos coincidem em que o gesto principal era o balancear da cabeça, num sinal de desaprovação. OS DIRIGENTES: Porém serão os dirigentes religiosos do povo, aqueles que Jesus definia como chefes sacerdotais, anciãos e escribas (Lc 9, 22) os que neste momento, como chefes [archontes](35) zombavam dele e riam dizendo: Ele que salvou outros que se salve a si mesmo se é o Messias [Cristo ou Ungido] de Deus, o seu Eleito. Aparentemente a cruz era a destruição de um inimigo, de um homem; mas na realidade tratava-se da ressurreição de um novo Deus, e de um Senhor que era, precisamente por isso, tanto Kyrios como Chrestós [Deus e Ungido] (At 2, 36). A mofa dos magistrados dá pé para saber que Jesus morria na cruz por se ter declarado Messias e Eleito de Deus, segundo os salmos: Fui eu que consagrei o meu Rei sobre Sião [Jerusalém], minha montanha sagrada (Sl 2, 6). Assim, os outros dois sinóticos, acrescentam o desça da cruz como objetivo de salvação. Porém esse homem, destroçado pelo sofrimento na cruz, era verdadeiramente o Ungido, transformado em Redentor, segundo Isaías 59, 20: Virá um redentor em Sião aos que se converterem da sua rebelião em Jacob. Jesus, em sua resposta à petição do bom ladrão, não nega seu reinado e por isso lhe declara que estará com ele no paraíso onde seu reino será total e definitivo.

OS SOLDADOS: Menosprezavam-no, pois, também os soldados, aproximando-se e oferecendo-lhe vinagre (36) e dizendo: se tu és o rei dos judeus salva a ti mesmo (37). Inludebant autem ei et milites accedentes et acetum offerentes illi.  SOLDADOS: Lucas emprega duas palavras diferentes. Uma para soldados romanos Stratiotes <4757>e outra, Strateuoma para guardas e policiais<4753>. O estratiotes é usado neste caso e o strateuoma no caso de Herodes (23, 11) e dos que perguntam a João sobre seus deveres (3, 14). Neste caso, eram soldados romanos os que custodiavam os crucificados. Como tropas auxiliares, muitos deles eram samaritanos, inimigos natos dos judeus. Daí que a burla fosse natural, especialmente por ter o réu o título de rei dos judeus. Um detalhe para ver até que ponto os evangelistas contam a verdade: Na burla dos chefes judeus vemos que eles pedem que Jesus demonstre sua missão: Se és o Cristo, intenção que não aparece entre os soldados. E os chefes sacerdotais ainda pedirão como supremo sinal o descendimento da cruz para crer no envio de Jesus como rei de Israel. VINAGRE: O termo oxos [acetum em latim] não pode ser traduzido por vinagre simplesmente; mas na época significava o que hoje chamamos de vinho seco, sendo oinos o termo que indicava vinho doce. Assim se entende a frase latina acre acetum [vinho azedo] ou, como outros traduzem, vinagre azedo, que não tem muito sentido, pois o vinagre sempre é azedo. O oxos, pois, era o vinho que tomavam por costume os soldados romanos. A tradução da bíblia KJ é vinegar [vinagre]. João confirma com sua narração o que acabamos de dizer: Estava lá um vaso cheio de vinho [oxos grego e acetum latino] (19, 29). Outros, afirmam que era a bebida chamada posca, também utilizada pelos soldados, e que consistia numa mistura de vinho azedo, ou vinagre, com água. Geralmente o vinho de baixo teor alcoólico facilmente vira vinagre, especialmente em climas cálidos. Lucas, aparentemente considera este ato como parte da burla dos soldados. Mateus fala de uma esponja empapada em oxos (27, 48), coisa que repete Marcos (15, 36), embora pouco antes tinha escrito que deram-lhe vinho com mirra, que Ele não tomou (15,23), porque este parece ser um ato costumeiro dos que assistiam aos condenados para diminuir as dores, como se fosse um calmante. João fala também dessa esponja. (19, 29) que tomou ou provou, logo dizendo está cumprido. Sem dúvida que se refere ao salmo 68, 22 segundo a Setenta ou 69, 22 no hebraico. Para se cumprir o dito pelo profeta: quando tinha sede deram-me a beber vinagre [chomets hebraico]. Lucas diz que se aproximaram os soldados, quer dizer que na custódia estavam um tanto longe da cruz, não tão longe como os familiares e amigos. REI DOS JUDEUS: O motivo do caçoamento dos soldados era ver um rei condenado sem que nenhum dos seus súditos o tivesse defendido. Como tal rei, ele devia se defender, e, a melhor forma, era descer da cruz nesse momento crucial, e lutar. É muito provável que os soldados fossem samaritanos e, portanto entendiam perfeitamente as mofas dos chefes judeus assim somando-se as mesmas (versículo 35). A razão desta burla está no versículo seguinte.

O TÍTULO: Já que também uma epígrafe  estava escrita sobre Ele, em letras gregas e romanas e hebraicas: Este é o Rei dos judeus (38). Erat autem et superscriptio inscripta super illum litteris graecis et latinis et hebraicis hic est rex Iudaeorum. : Os réus na cruz tinham um capuz na cabeça [obnubilato capite que diz Cícero] e sobre a cruz, pendurado, estava o nome e o motivo da condenação. Era o elogium romano. O título de Jesus estava escrito em três línguas: hebraico, grego e latim. O título mais comprido,  talvez o autêntico, é o de João: Jesus, o Nazareno [Nazoraios], o rei dos judeus. Em latim, Iesus Nazarenus Rex Iudeorum. Daí as iniciais INRI tão em uso nas imagens do crucificado. João é o único que usa o sobrenome Nazoraios, pois Mateus e Marcos usam unicamente o nome Jesus e Lucas se contenta com Rei dos judeus. A palavra Nazoraios nada tem a ver com Nezer, Nazir ou Nazireu aquele que se consagra a Deus e por isso deixa o cabelo crescer e não bebe bebidas alcoólicas, segundo os estatutos do Nazir ou consagrado em Nm 6,1 +. Na tabuleta encontrada como a original da cruz, o Nazareno em hebraico é Nzri [naziri(?)]segundo a reconstrução de Marini. Mas qual era o verdadeiro sobrenome de Jesus? Nazaraios ou Nazareno? É o demônio que o Chama de Nazareno (Mc 1, 24);  também assim o chama a criada que acusa Pedro (14, 67) e o anjo  no sepulcro (16, 6). Mas será Nazoraios em Mc 10, 34. e parece que este evangelista usa uma retradução do latim em que o adjetivo toponímico usa o nus como terminação: palestinus , jerosolimitanus, etc.. Lc 4, 34 é uma cópia fiel de Marcos 1, 24. Porém em todos os outros casos dos demais evangelistas o uso de Nazoraios é total e, portanto esta devia ser a palavra correta. Jesus recebe um sobrenome que não é o patronímico comum entre os judeus, mas um toponímico como é o caso de Maria Madalena ou Simão de Cirene. Jesus de Nazaré seria o nome oficial do réu na cruz. REI DOS JUDEUS: Esta era a razão, segundo Pilatos, pela qual foi condenado Jesus. O crime de lesa majestade era suficiente para o castigo máximo, que no tempo era a cruz. Esse delito era o que tinha contemplado Pilatos para poder aplicar a lei, segundo narra João: Todo aquele que se faz rei opõe-se a César (19, 12). E como os gritos dos assistentes pedissem a cruz, Pilatos deve perguntar: Crucificarei o vosso Rei? (19, 15). E, na opção dos chefes dos sacerdotes de não ter mais rei que o César, Pilatos dá a ordem: Ibis in crucem (irás para a cruz). A condena, da parte dos judeus, era uma blasfêmia: Ouvimos a blasfêmia, que vos parece? E todos julgaram-no réu de morte (Mc 14, 63). Era a condena judaica, a verdadeira, segundo João: Nós temos uma Lei e conforme essa Lei, Ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus (Jo 19, 7). Porém, da parte romana era necessário um delito civil, tal qual diziam os acusadores: Encontramos este homem subvertendo nossa nação, impedindo que se paguem os impostos a César e pretendendo ser Ungido-Rei (Lc 23, 2). Pilatos, segundo o costume romano ditou Sententiam, ex autoritate principis não baseada no caráter arbitral ou num ato restrito do cidadão, mas como Praetor, magistrado, presidindo o processo da cadeira curul. A cadeira curul [sella curulis] era o assento sobre o qual os magistrados que possuíam Imperium [máxima potestade, soberania e comando que era a personificação, no magistrado, da supremacia do Estado], tinham direito a se assentar. Estes magistrados incluíam o dictator, o magister equitum, o consul, o praetor e o aedilis curulis. A cadeira curul estava habitualmente construída de marfim, com pernas curvas formando um amplo X sem respaldo e com braços baixos. Podendo ser dobrada facilmente e assim ser transportada, especialmente pelos generais no caso de guerra. Pensemos também que o juízo de Jesus foi feito no Praetorium, a tenda do Imperator, o comandante máximo do exército que representava a Majestas Populi Romani. Os detentores de imperium tinham o poder de executar ordens e, para simbolizá-lo, eram escoltados por lictores com bastões enfeitados com fasces (feixes) de varas com um machado no meio, indicando a potestas de castigo e morte. À parte do Imperium existia a Potestas um poder derivado como consequência de uma delegação total ou parcial desse Imperium, embora a potestas era também o poder daquele que em si mesmo representava o Imperium. Precisamente o Proetor era o delegado da suprema autoridade, Imperium, nas províncias até o ano 42 em que foi chamada de Procurator. O imperium inclui todas as atribuições da potestas e mais: o direito de tomar os auspícios fora de Roma, o direito de organizar e comandar o exército; a jurisdição (poder de dizer o direito), repartida, paulatinamente, entre os magistrados; o direito de exercer coerção (coercitio), consistente em deter o cidadão e obrigá-lo a comparecer perante a autoridade; o direito de convocar o povo fora de Roma, nos comícios centuriados. A potestas, por sua vez, compreende: o direito de tomar os auspícios dentro da cidade; publicar os editos (jus edicendi); impor multas (jus multae dictionis); direito de convocar o povo dentro da cidade, para lhe dirigir a palavra e para fazê-lo votar; direito de convocar e de presidir o Senado (Senatum vocare), determinar que este aprecie um caso determinado (referre ad senatum) e que delibere e vote (cum patribus agere). Quando Paulo fala de Potestas et Imperium  este sempre se refere ao Imperium Domini [império do Senhor arché= principium] ou seja, de Deus  e a potestas [exousia= potestas]. Finalmente, vemos como os judeus apelam ao crime de MAJESTAS LAESA, ou Perduellio. Expliquemos os termos: A palavra Majestas significava a dignidade do povo romano. No período republicano, o termo Majestas laesa ou minuta era aplicado aos casos em que um general traía seu exército, ou capitulava diante do inimigo, em que como mando excitava uma sedição e em geral sua má conduta na administração que prejudicava a majestade do estado. As Leis das XII Tábuas punia com morte quem agitasse um inimigo contra Roma ou entregasse um cidadão romano ao inimigo. Alguns destes delitos foram enumerados na Lei Julia, modificada com o tempo pelas Senatus Consulta  e Constituições Imperiais. Nos primeiros tempos da República, um ato injurioso contra o estado ou a paz, recebia o nome de Perduellio e o ofensor era julgado publicamente [populi judicio] e, se convicto, executado. A palavra parece que significava inimigo e assim, essa ofensa era equivalente a fazer guerra contra a república. O nome se transformou em lex de majestate  nos tempos de Júlio César [daí o nome de lex Julia] e Augusto. Durante o Império, o termo Majestas aplicava-se à pessoa do César reinante  e assim temos a frase Majestas Augusta, do mesmo modo que era aplicável aos magistrados da República  como cônsules  e pretores. No tempo de Tibério a ofensa ou delito de Lesa Majestade estendeu-se a atos e palavras desrespeitosas contra o Príncipe. Destruir ou vilipendiar uma estátua, consagrada ao César, era considerado crime de Lesa Majestade. Ulpiano [século II] afirma que o crime de Lesa Majestade é próximo ao de sacrilégio. O Crime de Lesa Majestade é aquele que é cometido contra o povo romano e contra a sua segurança. A falsificação da moeda entrava também dentro desse crime de Estado. Assim compreendemos que os cristãos que não podiam nem adorar nem venerar as estátuas do Imperador fossem considerados como réus de sacrilégio contra a Majestas e, portanto sujeitos do crime de Laesae Majestatis, ou como escreveu Tácito, convictos de ódio contra o gênero humano. Os cristãos morriam por não ter mais rei que Cristo à semelhança dos cristeros do México e de muitos mártires da guerra civil na Espanha, que morriam gritando: Viva Cristo Rei! Concede-me – orava diariamente o cristero mexicano- que meu último grito na terra e meu primeiro cântico no céu seja:  Viva Cristo Rei! Porém, em nosso caso, o de Jesus, temos o delito de convocar uma sedição, ou revolta armada, ou ajudar os inimigos e armá-los contra os soldados romanos. Não é esta a acusação dos dirigentes judeus contra Jesus? (encontramos este homem, subvertendo nossa nação, impedindo que se paguem os impostos a César e pretendendo ser Rei). E não podemos esquecer que estamos nos tempos de Tibério que endureceu os termos de Laesa Majestas. A mesma alternativa de Barrabás confirma a nossa tese: ele era um subversivo [um terrorista] que, numa sedição ou revolta, tinha matado provavelmente algum soldado romano e seus cúmplices seriam os dois lëstai que no meio dessa sedição [en te stasei] tinham cometido um homicídio (Mc 15,7). Se Marcos (15, 27) e Mateus (27, 38) os chamam de ladrões [lëstai] e João nada diz com respeito aos seus crimes, Lucas diz deles que eram  kakourgoi, ou malfeitores. É bom observar que a palavra lëstes, em grego significa ladrão violento [robber] a diferença de kleptes que é um vulgar ladrãonzinho [thief]. Por isso lëstes deve ser traduzido por bandido, com mais propriedade do que ladrão. Essa é a tradução que dão do delito de Barrabás em Jo 18, 40, como bandido, embora o latim use o latro [ladrão vulgar] inaplicável para um sedicioso (Mc 15, 7). Como nota, pensemos que Jesus nada respondia diante das autoridades civis. Suas palavras podiam ser mal interpretadas tanto pelo juiz, quanto pelos ouvintes. A melhor defesa era o silêncio. As únicas palavras de Jesus foram: Não terias poder algum sobre mim [potestatem adversus me] se não to tivesse dado Deus (Jo 19, 11). Com isso, Jesus diz a Pilatos que a autoridade dEle [de Jesus] era superior à do juiz nesse momento, que era o pretor romano. Indiretamente Jesus se declara superior ao Imperium. Nessa circunstância, Deus quer que o pretor julgue e condene quem não poderia ser nem julgado nem condenado por uma autoridade humana. E só como testemunha da Verdade Ele quer ser julgado, pois foi para isso que veio ao mundo (Jo 18, 17). Esse é seu reino. E como testemunha da verdade muitos o condenam.

OS KAKOURGOS: E um dos malfeitores pendurados blasfemava dele dizendo: Se tu és o Ungido (messias-rei), salva a ti mesmo e a nós (39). Respondendo, porém, o outro lhe reprovava, dizendo: Nem temes tu a(o) Deus já que estás sob a mesma condena? (40). Unus autem de his qui pendebant latronibus blasphemabat eum dicens si tu es Christus salvum fac temet ipsum et nos Respondens autem alter increpabat illum dicens neque tu times Deum quod in eadem damnatione es. Que tipo de malfeitores [tradução da palavra kakourgos] eram os dois crucificados? Em parte já temos respondido essa pergunta no parágrafo anterior. Mas vejamos mais sobre isto. Lucas nada diz, mas emprega uma palavra que somente ele usa e que unicamente fora dos evangelhos a encontramos em 2 Tm 2, 7, quando Paulo declara seus sofrimentos, entre os quais enumera os perigos dos kakourgoi que podemos assimilar a Lëstoi [salteadores] ou seja, os que assaltavam nos caminhos (Lc 10, 30) e que tinham como moradas, covas por viverem fora da lei (19, 46.): Era a vida que os subversivos da época deviam viver para se subtrair da justiça que os perseguia com espadas e porretes (Mt 26, 55). Era o antigo terrorismo que hoje infelizmente conhecemos tão bem. Dessa ralé era Barrabás (Jo 18, 40), supostamente chefe de uma rebelião (Mc 15, 7) e salteador (Jo 18, 40). Por isso, Pilatos o compara com Jesus a quem os chefes locais acusam de subversivo [kakopoiós] (Jo 18, 30 e Lc 23, 14). É uma boa sugestão pensar que há indícios de que os dois malfeitores eram cúmplices de Barrabás, porque os romanos crucificavam os subversivos que recorriam a práticas terroristas. O simples assaltante era levado, como outros pequenos malfeitores, às galeras ou às minas. Caso os dois malfeitores fossem subversivos ou zelotas, compreende-se melhor a acusação dos chefes dos sacerdotes perante Pilatos ao afirmar: Se este não fosse malfeitor [kakopoios=fazedor de mal igual a kakourgos= operador do mal] não to entregaríamos (Jo 18, 30). O crime de Jesus era a subversão: Se tornar rei dos judeus, opondo-se ao César (Jo 19, 12). Entre Jesus e a conduta prévia dos dois malfeitores, existia uma correspondência que um zelota de boa vontade entendia perfeitamente do ponto de vista religioso. Daí a repreensão deste último a seu companheiro. KRIMA: A palavra significa tanto julgamento como pena, devida a uma condenação, muitas vezes com ela identificada. A tradução mais divulgada é que ele, o outro kakourgos, encontrava-se na cruz, cumprindo uma condenação. Uma delas é a que diz que, na cruz, estava sob a mesma condenação que Jesus. Por que, pois, repreendê-lo? Podemos deduzir isso também da Vulgata [in eadem damnatione] era pedir respeito para quem sofria como companheiro e que não merecia o desrespeito, que era um pecado segundo as leis mosaicas. Esta é a impressão dada pela tradução da RA portuguesa: estando sob igual sentença. A outra é que ele, o malfeitor que blasfemava, estava dentro da própria pena que o condenava, sem referência a Jesus. Esse castigo era justo e definitivo, e a hora era a de temer pelo juízo de Deus, não a de se mofar de outros.  Eis a tradução espanhola: Nem temes a Deus tu que estás  no mesmo [próprio] suplício? Estando já sofrendo a condenação, era a hora do arrependimento pelos crimes cometidos, necessário para ser recebido benignamente pela justiça divina. Esta segunda versão vem avaliada pelo versículo seguinte.

ESTE NENHUM MAL TEM FEITO: Já que nós, portanto, com justiça, recebemos as consequências merecidas dos atos praticados; porém este nada de errado realizou (41). Et nos quidem iuste nam digna factis recipimus hic vero nihil mali gessit. O bom malfeitor [bom pécheur, que diria Peguy] reconhece o castigo sobre eles como justo. Mas também confessa que o homem a seu lado nada fez contrário às leis e que era inocente. Quem melhor do que um cúmplice ou um entendido na matéria para defender um inocente? O acusado, Jesus, era inocente, embora estivesse cumprindo o mesmo castigo que os dois culpados. Em que momento das aproximadamente três horas de agonia na cruz, ele confessou seu pecado e pediu para ser socorrido? Nada podemos dizer a respeito. Mas sabemos por experiência que os homens só pensam em Deus quando toda ajuda humana está perdida.

LEMBRA-TE DE MIM: E dizia a Jesus: lembra-te de mim, Senhor, quando chegares em teu reino (42). Et dicebat ad Iesum Domine memento mei cum veneris in regnum tuum. Uma vez confessados e aceitos seus crimes, que é o primeiro passo do arrependimento, ele se dirige a Jesus dizendo: Senhor [Kyrie], lembra-te de mim quando chegares em teu reino. A palavra Kyrie tem um significado transcendente como é o de quem se dirige a Deus; mas pode ter o alcance de apelar para alguém de certa autoridade. O verbo vir está em aoristo subjuntivo, tendo como significado um condicional: se algum dia vieres como rei. É uma frase difícil de entender: Como podia o malfeitor esperar coisa boa, um prêmio, de um condenado às mais humilhante das penas, no meio de insultos que transformavam seu reinado no mais espantoso dos ridículos? Só a graça de Deus que fortalece a debilidade (2 Cor 12, 10) é a resposta a essa petição. Sem dúvida que se interpretamos a palavra kakourgos por revoltoso, um zelota [embora a palavra foi cunhada mais tarde], como seria o nosso protagonista, estaria a par dos acontecimentos e especialmente dos fatos sobrenaturais de Jesus e de sua entrada triunfal pouco antes em Jerusalém. Tudo isso tinha um significado transcendente, que o nosso kakourgos não podia esquecer. É possível que a conduta tão singular de Jesus na cruz e os fenômenos que acompanharam a crucifixão (trevas, terremoto e outras coisas como testemunhou também o centurião [Lc 23, 44 e Mt 27, 54]), influíssem também neste raciocínio, do qual o centurião romano também participou: Certamente, este homem era um justo (Lc 23, 47) ou como escreve Mateus: Em verdade, filho de Deus era este (Mt 27, 54). A fé sempre é dada quando a pessoa está disposta a distinguir os sinais dos tempos (Mt 16, 3).

A PROMESSA: Então lhe disse Jesus: Certamente te digo: hoje comigo estarás no paraíso (43). Et dixit illi Iesus amen dico tibi hodie mecum eris in paradiso. Jesus afirma rotundamente [amém] que nesse mesmo dia o malfeitor que estava junto de Jesus como condenado, estaria com ele como perdoado. Vamos ver o significado,  sempre escuro, de Paradeisos [paraíso]. É uma palavra de origem oriental de onde se origina o hebraico Pardes. É parte do Hades que os judeus pensavam ser a mansão das almas dos homens piedosos esperando a ressurreição. Mas outros entendem que designa um paraíso celestial, à semelhança do inicial do Gênesis. Vamos estudar isto com maior detalhe. Vamos distinguir entre Seio de Abraão, Éden e Paraíso. SEIO DE ABRAÃO: A palavra que se traduz por seio é Kolpos [seio, regaço] próprio dos homens assim como koilia [cavidade, ventre] é próprio das mulheres. O Reino é semelhante a um banquete. Nestes, os convivas reclinavam-se ao modo romano e por isso o discípulo amado se reclinava no seio de Jesus (Jo 13, 23). O mesmo evangelista usa imediatamente a palavra Stethos [peito] em 13, 25 e em 21, 20. Daí que no relato de Lucas sobre Lázaro, o pobre, este fosse levado pelos anjos ao seio de Abraão (16, 22) onde foi visto  pelo rico epulário nos seios (sic) de Abraão que a Vulgata e as línguas modernas reduzem ao singular: no seio dele. Explicávamos, em recente evangelho, como a palavra kolpos pode também designar baia ou remanso. (ver comentário do dia 30 de setembro, XXVI do Tempo Comum). Claramente temos aqui uma reminiscência do banquete que Jesus afirmava era a alegria e gozo do Reino previsto no Antigo Testamento. Em João, sabemos que o  Unigênito que estava no seio do Pai era quem o revelaria a nós. Como comentávamos em nossa exegese sobre Lucas, no XXII Domingo deste ano sobre Sheol, Gehena e Seio de Abraão, o banquete do rico foi assumido por Lázaro como banquete do além eterno. Porém, com Jesus não era a companhia de Abraão que representava o conjunto dos justos, dos amados de Deus, mas se tornava em Paraíso, o lugar feliz da companhia de Deus, perdido pelo pecado, mas agora recuperado pela morte sacrifical de Jesus. Que significava, pois, paraíso nos lábios de Jesus? Primeiro explicaremos Éden. ÉDEN: Derivada do acadiano edinu que tem origem no sumério éden significando planície ou estepe. O topônimo bit adini designa a região dos dois lados do Eufrates.  Foi indiretamente ligada à palavra hebraica ádan <0527>  [com ayim] que significa desfrutar, ter prazer bem [diferente de  Adam<0120>, homem ou nome próprio, com aleph]. A LXX parece que tomou como raiz a hebraica e, portanto traduziu o gan be-eden [jardim em Éden] por paraíso em Éden [Paradeisos em Éden], que a vulgata traduz por paradisus voluptatis  [paraíso do prazer]. A tradução da vulgata não é tão ilógica, pois em hebraico as três consoantes de YDN são idênticos para Éden [nome próprio de uma região] e para adan [prazenteiro]. Daí que gan é paraíso e Éden é um nome próprio no hebraico e na LXX; e um adjetivo na Vulgata, como vemos em Gn 2, 15 e 3, 23 que a Vulgata traduz o gan Éden por paradisus voluptatis. Unicamente a LXX traduz por paradeisos tes tryfés (da delicadeza ou do prazer) o versículo 3, 23 [hebraico gan-eden e não gan be-den] em que Adam foi expulso do jardim do Éden para a terra de onde tinha sido tomado. No Gênesis hebraico, parece que Éden é uma região geográfica onde se situava o jardim, propriedade de Deus, que parece estava na confluência ou foz dos rios Tigre e Eufrates no Golfo Pérsico, em que agora encontramos Basorá, a não ser que entendamos essa região como situada no terceiro céu, lugar do palácio divino. Éden é um símbolo de grande fertilidade em Isaías 51, 3, Ezequiel 36, 35 e Joel 2-3. Daí que em Isaías Jardim do Éden é paralelo a Jardim do Senhor e em Ezequiel Jardim de Deus, para significar mais tarde, não um lugar geográfico, mas um estado de comunhão perfeita com Deus. Em Joel lemos como, após a passagem dos gafanhotos, a terra que era como um jardim de Éden [gan eden, paradeiso tryfés, hortus voluptatis em hebraico, grego e latim] ficou como um deserto desolado. Amós fala da casa do prazer [beate éden, domus voluptatis]. No período intertestamentário só temos um caso em Sirac: a generosidade [charis] é como um paraíso [paradeisos] de bênçãos [en eulogiais], que repetirá no versículo 27, só que neste caso será o temor de Deus a fonte das bênçãos. O paraíso de Deus  se identificará com o lugar onde os justos ficavam esperando a ressurreição no meio do seio de Abraão como vemos em Lc 13, 28 [meso tou paradeisou tou Theou no meio do paraíso de Deus]. Mas vejamos a palavra Paraíso tanto no grego como no hebraico. O PARAÍSO: Existe uma palavra derivada do avéstico [antiga língua do norte da Pérsia] pairidaeza [= cercado circular, aplicado aos jardins reais] que deu origem ao grego paradeisos e ao latim paradisus. A) No AT era o lugar onde Deus colocou o primeiro homem para que o trabalhasse e do qual o jogou fora após o pecado. Já temos visto que a vulgata traduziu os textos de modo a ser identificado com jardim de delícias. Segundo os comentários dos modernos judeus, a palavra Paraíso é tradução do pardes hebraico, que significa parque real, jardim. É a tradução do gan [jardim fechado, ou cercado por uma sebe ou muro]. Nos livros posteriores da Bíblia encontramos três vezes a palavra pardes com sentido de jardim (Ct 4, 13) e de parque (Ecl 2, 5 e Ne 2, 8). A literatura apocalíptica e o Talmud usam como jardim de Deus o sinônimo de Éden. O paraíso não recebe grande ênfase na visão judaica. É o lugar de delícias, jardim, ou parque, ou bosque. B) No NT se identifica com o céu, lugar em que os bemaventurados gozam da presença de Deus. Paraíso aparece três vezes nos textos do NT: Lc 23, 43; 2 Cor 12, 1-4 e Ap 2, 7. O melhor texto é o de Paulo aos de Corinto. Ele afirma que foi arrebatado ao paraíso [paradeison] que antes descreveu como sendo o terceiro céu (12, 2). Daí deduzimos que paraíso e céu, morada de Deus, eram a mesma coisa no pensamento cristão da época. Por isso o Apocalipse  afirmará: ao vencedor darei a comer da árvore da vida que está no paraíso (2, 7). É a vida de Deus que, segundo o mito-parábola das árvores da ciência e da vida, fazia os mortais semelhantes a Deus (Gn 3, 22-23). Hoje usaríamos a palavra céu, a mais usada para definir a vida íntima com Deus. Jesus, com sua morte, transforma o seio de Abraão em Paraíso, ou melhor, lugar beatífico, estado de comunhão com Deus em Cristo.

PISTAS: 1) A festividade de Cristo Rei foi instituída por Pio XI pela preeminência da festa sobre o simples ensino. Daí que as festividades foram instituídas em períodos de heresia para venerar com maior frequência e firmeza algum mistério da fé. No nosso caso, diz o Papa, a heresia moderna é o laicismo, peste que infecciona a humana sociedade. Começou-se por negar o Império de Cristo sobre todas as gentes, negou-se à Igreja o direito de ensinar, de dar leis e de dirigir os povos conduzindo-os à eterna felicidade, para submetê-la à arbitrária permissão dos governantes e magistrados. Parece uma profecia do que está sucedendo na Europa atual que negou a sua origem cristã na nova Constituição programada. Um segundo motivo é a apatia e timidez dos bons que se abstêm de defender os direitos da Igreja; com isso, a força dos adversários cobra maior temeridade e audácia.

2) Na sua homilia no ano 2000, ano santo, o Papa J.Paulo II reafirmava a doutrina católica, declarando que Cristo é o alfa e ômega da criação e como verdadeiro Rei do Universo governa e renova tudo para poder entregá-lo ao Pai, assim renovado, de modo que Deus seja tudo em todos (1 Cor 15, 28). É o Paraíso final. Vivei, diz o papa, de modo que o mundo seja transformado pelo amor e para o louvor a Deus.

3) Como viver esse reino na terra? A realidade diária está longe do ideal diz o Papa. Todos estamos tentados a abandonarmos à rotina. Mas devemos realizar com esmero o trabalho, até o mais burocrático. Devemos olhar as pessoas, seus problemas e seus sofrimentos, embora tenhamos unicamente documentos nas mãos. Um discípulo de Cristo jamais deve se acomodar na mediocridade, pois todo trabalho pode ser caminho de santidade.

4) Do exposto anteriormente, vemos como a escolha estava entre o Imperium representado pelos imperadores, tendo como base os deuses de Roma, e o Reino de Cristo, em que este representava realmente o Imperium do Deus único. Ou era o Imperador, ou era Cristo. Por isso vemos como as palavras deste último se tornaram realidade: Sereis odiados por causa de meu nome (Mt 10, 22).

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