Comentário Exegético – III Domingo da Páscoa – Ano A

EPÍSTOLA (1Pd 1, 17-21)

(Padre Ignácio, dos padres escolápios)

O PAI: E se chamais de Pai a quem julga sem acepção de pessoas, segundo a obra de cada um, procedei em temor o tempo de vossa peregrinação (17). Et si Patrem invocatis eum qui sine acceptione personarum iudicat secundum uniuscuiusque opus in timore incolatus vestri tempore conversamini. A intenção do apóstolo é afirmar que a fé, e não as obras fundadas na lei de Moisés, é a que salva, pois foi o sacrifício de Cristo que com seu sangue pagou o resgate pelos pecados. E foi esta fé na ressurreição de Cristo que causa a esperança em Deus como Pai. Porém, Pedro não esquece que, em definitivo, a fé sem obras está morta (Tg 2, 20). É por isso que neste versículo chama a Deus o Pai que julga SEM ACEPÇÃO DE PESSOAS [aprosôpolêptôs<678>=sine acceptione personarum] O grego é um composto de a (sem) prosopôn (pessoa) e lambano (tomar) cujo significado é imparcialmente ou sem acepção de pessoas, que responde evangelicamente às palavras do Batista, sobre o julgamento divino na nova era messiânica: Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo (Mt 3,10) e em sua mão tem a pá, e limpará a sua eira, e recolherá no celeiro o seu trigo e queimará a palha com fogo que nunca se apagará (Mt 3, 12). Nesse juízo, segundo Paulo, Deus recompensará cada um segundo as suas obras, a saber: a vida eterna aos que, com perseverança em fazer o bem, procuram honra, glória e incorrupção, mas a indignação e a ira aos que são contenciosos, desobedientes à verdade e obedientes à iniquidade (Rm 2, 6-8). Para deduzir que esse juízo é exato, pois para Deus não há acepção (prosopôlêpsia) de pessoas (idem 11). PROCEDEI [anastrafête<390>=conversamini] é o imperativo do aoristo do verbo anastrefö com o significado de revolver, retornar, reverter e como típico da conduta humana é comportar-se, conviver, proceder. Ou seja, devemos nos portar com esse temor saudável de nossa parte de perder o trem como vulgarmente se diz, porque as nossas obras não correspondem ao que deveríamos realizar. E o apóstolo acrescenta no tempo de vossa PEREGRINAÇÃO [paroikia<3940>=incolatus] a paroikia grega tem o significado de moradia em terra estranha, como vemos na outra ocasião em que aparece a palavra: O Deus deste povo de Israel escolheu  nossos pais e exaltou o povo, sendo eles estrangeiros na terra do Egito (At 13, 17). Como adjetivo [paroikos] aparece também em 1Pd 2, 11 : peço-vos como a peregrinos [paroikous] e forasteiros. De modo que os fieis pertencem a uma paróquia ou grupo que na terra considera-se como peregrino na terra. A mesma palavra peregrino indicava em Roma um sujeito não cidadão, mas estrangeiro.

A REDENÇÃO: Sabendo que não por corruptíveis (meios) de prata e ouro fostes remidos da vossa inútil conduta tradicional (18). Scientes quod non corruptibilibus argento vel auro redempti estis de vana vestra conversatione paternae traditionis. CORRUPTÍVEIS [fthartoi<5349>=corruptibiles] a palavra grega indica uma coisa corruptível, perecível. A palavra sai 6 vezes no NT: 4 em Paulo e dois em Pedro, sempre com o significado de coisa perecível, que em si leva a corrupção e destruição de modo especial o homem (Rm 1, 23), pois seu corpo, uma vez que a morte toma conta de sua existência, chega a corromper-se de modo que todos sabem do resultado. Por isso, Paulo fala sempre da diferença entre o corpo mortal corruptível e o corpo dos ressuscitados, incorruptível e imortal (1Cor 15,53). Pedro trata do ouro e da prata como coisas corruptíveis, ou seja, perecíveis máxime dando a elas um valor praticamente nulo, pois não podem ser usados eternamente. Pedro alude aqui ao resgate (lytron) usando o verbo remir [lytro<3084>=redimere] próprio do preço pago em ouro ou prata pelo livramento de um escravo. Pedro coincide com Paulo ao definir a obra de Cristo como um resgate de escravos que se em Paulo é do pecado e da morte, aqui, falando aos pagãos neoconversos, é dos cultos politeístas, que define como inúteis [mataias<3152>=vana] palavra que em grego significa sem força, inútil, desnecessário, imprestável, fútil, vão. Inútil conduta é a expressão que a Setenta e o NT aplicam ao culto dos ídolos como vemos em At 14, 15: Vos anunciamos que vos convertais dessas vaidades ao Deus vivo, dirá Paulo aos de Icônio. E aos de Éfeso: E testifico no Senhor para que não andeis como andam os outros gentios, na vaidade [mataioteti] da sua mente (Ef 4, 17). Eram costumes que tradicionalmente receberam de seus antecessores.

O SANGUE DE CRISTO: Mas com precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e mancha, de Cristo (19). Sed pretioso sanguine quasi agni incontaminati et inmaculati Christi. Pedro agora define qual foi o preço do resgate: o sangue de Cristo, que ele chama de PRECIOSO [timios<5093>=pretiosus] o termo grego indica um valor precioso, um grande preço, de muita estima, especialmente caro. Nada menos que o de Cristo a quem compara com um cordeiro sem defeito e sem mancha como eram os escolhidos para o sacrifício. É o que Paulo afirma em 1 Cor 6, 20: fostes comprados a bom preço. Um comentário de Pelágio diz: se comprado por um preço pequeno, de um escravo se exige plena servidão, quanto mais exigirá de nós que nos comprou por um preço altíssimo? A figura de Cristo como cordeiro pascal é coisa conhecida pelos primeiros cristãos e fundamentada nos escritos evangélicos. O Batista o define como cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1, 29), coisa que o próprio escritor do quarto evangelho reafirma ao atribuir a Jesus na hora da morte dos cordeiros pascais esta profecia: isto aconteceu para que se cumprisse a Escritura que diz: Nenhum dos seus ossos será quebrado (Jo 19, 36). E Finalmente Paulo em 1Cor 5, 7: Cristo nossa Páscoa foi sacrificado por nós. Diante destas palavras que cremos tão claras como poderemos interpretar as de um moderno comentarista afirmando que REDENÇÃO é um termo metafórico que implica uma mudança de situação sem que Cristo tenha pago nada. A Cristo ele custou muito, mas não no sentido de preço, que é pura imagem. Falar de seu sangue e falar de sua morte não implica necessariamente num sacrifício expiatório que tem o sentido pagão de volver favorável a um Deus ofendido. (É que os sacrifícios expiatórios não existiam entre os judeus? Ver Êx 29, 33 e 30, 10 em que o animal para a expiação é precisamente um carneiro [ayil<352>] para a expiação [kippur<3725>]).

PLENITUDE DOS TEMPOS: Já de antemão conhecido desde (a) fundação do mundo, mas manifestado em últimos tempos por causa de vós (20). Praecogniti quidem ante constitutionem mundi manifestati autem novissimis temporibus propter vos. CONHECIDO DE ANTEMÃO [proegnôsmenou<4267>=precognitus] o verbo é composto de pró  [antes] e gignoskò [conhecer] com o qual temos um preconhecimento. O texto diz desde a FUNDAÇÃO DO MUNDO [katabolê <2602> kosmou<2889>=constitutio mundi] uma frase que em Mateus 13, 35 significa desde que houve habitantes na terra é o mesmo que o reino preparado desde  a fundação do mundo (Mt 25, 34). Também Lucas fala do sangue de todos os profetas derramado desde a fundação do mundo (Lc 11, 50). O conhecimento era, sem dúvida, o que tinha Deus em seus planos ocultos e que foi revelado como diz Paulo na plenitude dos tempos, (Ef 1, 10) e não em outras gerações (Ef 3, 5). O conhecimento estava reservado aos tempos messiânicos que eram considerados como a última etapa da História ou plenitude dos tempos em que Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei (Gl 4, 4). POR VÓS [di ymas<5209>=propter vos] é uma expressão que indica a finalidade do sacrifício de Cristo: se imolou por nós pois como diz Paulo em Gl 2,20 todos podemos dizer que vivemos a nossa vida na fé, como crucificados com Cristo, que nos amou e se entregou por nós, cujo sangue foi derrammado por nós (Lc 22, 20).

A ESPERANÇA CRISTÃ: Os crentes por causa dele em Deus, o qual o ergueu dentre os mortos e deu-lhe glória, de modo que a vossa fé e esperança estejam em Deus (21). Qui per ipsum fideles estis in Deo qui suscitavit eum a mortuis et dedit ei gloriam ut fides vestra et spes esset in Deo. CRENTES [pisteuontas<4100>=fideles] na realidade muitos manuscritos têm pistous [fideles] ou fieis que para o sentido total não introduz muita diferença. Por causa de acreditar em Cristo temos a segurança de que Deus que o ressuscitou dentre os mortos será a nossa glória como foi a de Cristo de modo que a fé seja causa de uma esperança que o próprio Deus avalia.

EVANGELHO Lc 24, 13-35

 

OS DISCÍPULOS DE EMAÚS

(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

EMAÚS: Ora, eis que dois deles estavam caminhando nesse dia a uma vila, distante sessenta estádios de Jerusalém, de nome Emaús (13). Et ecce duo ex illis ibant ipsa die in castellum quod erat in spatio stadiorum sexaginta ab Hierusalem nomine Emmaus. EMAÚS: Seu nome significa banhos quentes e era uma vila [komes], ou seja, um conglomerado de casas rústicas para servir de habitações para os camponeses e outros, chamados teknos [marceneiro, pedreiro e ferreiro numa só pessoa] com uma população talvez inferior a 400 habitantes. Na atualidade, existe um local a 60 estádios ou aproximadamente 10 Km de distância de Jerusalém, que corresponde ao relato de Lucas. O Emaús bíblico [El- Qubeibah] está situado ao lado de uma via romana que ia de Jerusalém ao mar. Perto existe uma fonte que diz era onde Jesus lavou os pés após a caminhada com os dois discípulos.

A CONVERSA: E eles conversavam entre si acerca de todas as coisas acontecidas (14). E sucedeu que, enquanto eles conversavam e discorriam, também ele, (o) Jesus, tendo-se aproximado, caminhava com eles (15). Et ipsi loquebantur ad invicem de his omnibus quae acciderant Et factum est dum fabularentur et secum quaererent et ipse Iesus adpropinquans ibat cum illis. ACONTECIDAS [Symbebëkotön <4819>=acciderant]: Evidentemente eram os sucessos da morte de Jesus e de sua desaparição, tendo como sinal de discussão o sepulcro vazio. Era o domingo e o acontecido estava recente em suas mentes. Disso falavam entre si enquanto caminhavam. DISCORRIAM [Syzëtein <4802>=quaererent]: O verbo grego significa buscar, inspecionar, examinar e também debater, comentar. Temos optado por um verbo neutro como discorrer, ou seja, comentar em sentido de querer compreender o que tinha sucedido, pois para eles, os fatos não tinham uma razão compreensível. Nesse momento, Jesus,  que no grego tem o artigo determinante para indicar que era Ele precisamente, uniu-se a eles, como nova companhia.

OLHOS IMPOSSIBILITADOS: Porém, os olhos deles estavam travados de modo a não o reconhecerem (16). Oculi autem illorum tenebantur ne eum agnoscerent. TRAVADOS [Ekratounto <2902>=tenebantur]: Segundo o sentir da época, os olhos tinham dentro uma espécie de lanterna ou lâmpada, que se iluminava e assim podiam ver as coisas  (Mt 6, 22 e Lc 11, 34). O verbo grego Krateö significa agarrar, se manter firme, resistir, conter, e por isso, optamos por travar; daí entupir, estar fechado. Os seus olhos estavam atenazados, segurados; o latim diz tenebantur [estavam retidos ou reprimidos]. A consequência é que Jesus não foi reconhecido. NÃO O RECONHECERAM: Muitos falam de que na ressurreição existe uma diferença corporal que transforma a aparência natural, como viram os apóstolos o rosto de Jesus no monte Tabor. Ou melhor, como foi a aparência que tomou Jesus ao  aparecer a Maria Madalena (Jo 20, 14) ou aos discípulos na margem do lago (Jo 21, 4-7). Sem dúvida que Jesus não tomou a aparência usual de seu rosto terreno, para não causar pânico ou medo, como devia ser, caso vissem um morto ressuscitado que seria tomado por um fantasma (Lc 24, 37).

A PERGUNTA: Então lhes disse: Quais as palavras essas que discorríeis entre vós, caminhando; e (por que) estais tristes?(17). Et ait ad illos qui sunt hii sermones quos confertis ad invicem ambulantes et estis tristes. Sem dúvida que Jesus fala sobre o que pode escutar deles entrando na conversa sem produzir sobressalto algum. Foi um encontro normal entre caminhantes. No versículo 21 explica a causa da tristeza como sendo a perda de uma grande esperança que a morte tinha defraudado.

A RESPOSTA: Tendo respondido então, um deles, de nome Cléofas, disse-lhe: tu só dos que moras em Jerusalém e não conheces as (coisas) acontecidas nela nestes dias? (18). Et respondens unus cui nomen Cleopas dixit ei tu solus peregrinus es in Hierusalem et non cognovisti quae facta sunt in illa his diebus. CLÉOFAS: O grego diz Kleopas<2810> que o latim traduz por Cléophas e que aparentemente pode ser uma abreviatura de Cleopatros nome grego que significa [filho] de pai ilustre. Alguns distinguem entre este Kléopas e um outro que em grego tem um nome parecido, Klöpas[<2832>=Cleophas], mas que o latim traduz da mesma forma. Este Cleophas [latino] é o esposo da irmã de Nossa Senhora, também chamada Maria, a de Klöpas, e que estava ao pé da cruz, segundo João 19, 25: a irmã de sua mãe, Maria a de Köplas [Cleophas em latim, Cléofas português e Cleofás castelhano]. Klöplas tem a mesma  origem que o  aramaico Achab<0256> e significa tio. Como a mulher tinha o mesmo nome de Maria, [a da mãe de Jesus] daí deduzimos que Klöpas era realmente o irmão de José, esposo de Nossa Senhora e que a sua mulher era cunhada e ao mesmo tempo era a mãe de Tiago, chamado o menor e irmão de Jesus. Klöpas é a tradução aramaica de Cleopas. Kleopas e Klöpas eram, pois, a mesma pessoa, ou seja, tio de Jesus por parte de pai. Há quem, por esta circunstância, identifica Kleofas com Alfeu ou Alfaios, que em Mt 10, 3 se diz ser o pai de Jacob ou Tiago. Em todo caso ao indicar um nome, Lucas quer nos dizer que o relato tem uma boa fonte testemunhal. Que é uma narração de primeira mão.

PERGUNTA JESUS: Então lhes disse: Quais? Eles, pois, lhe disseram: as coisas acerca de Jesus o Nazoraio (sic), que se tornou homem profeta poderoso em obra e palavra diante de (o) Deus e de todo o povo (19). E como os chefes dos sacerdotes e os dirigentes [civis] o entregaram a um juízo de morte e o crucificaram (20). Quibus ille dixit quae et dixerunt de Iesu Nazareno qui fuit vir propheta potens in opere et sermone coram Deo et omni populo. Et quomodo eum tradiderunt summi sacerdotum et principes nostri in damnationem mortis et crucifixerunt eum. NAZORAIO [Nazöraios<3480>=nazarenus]: Qual é a diferença entre Nazareno e Nazoraio? Sem dúvida que nazareno significa oriundo de Nazaret. Mas que Significa nazoraio? Segundo alguns, a distinção está em que nazoraio vem de Naziyr [<05139>=sanctificentur] e que se traduz como Nazirado em português (nazireato em espanhol e italiano). Em Nm 6, 2: era o nome dado aos consagrados a Deus com voto especial, tanto homens como mulheres. Podia ser perpétuo como o caso do João, o Batista (Lc 1, 15); ou temporário, como em Paulo (At 18, 18). Pouco sabemos de como se fazia e temos muito maior conhecimento dos ritos para terminar esse estado especial. A Setenta usa o Euchë [<2171>=votum] voto, sem usar uma palavra para o Nazir. O voto impedia toda bebida de vinho ou fermentada, o corte de cabelo e o afastamento de todo cadáver mesmo do pai ou da mãe. Não parece que Jesus tivesse feito esse voto, pois bebia e comia (Mt 20, 22) e não teve inconveniente em tocar um cadáver (Mc 5, 41 e Lc 7, 31). Nazarenos [<3479>=nazarenus] é propriamente latim e Nazöraios é grego. Temos o exemplo em João 19, 19 no título da cruz em que usa o grego Nazöraios. Mateus em 2, 23 usa o mesmo Nazöraios como apodo próprio de Jesus. Uma única vez, em Lucas, vemos o Nazarene [de Nazaré] em 4, 34: Que a mim e a ti Iësou Nazarëne? Dirá o demônio. É Marcos quem usa o Nazarenos (grego latinizado) com o qual temos uma prova de que ele escreveu para os gregos de Roma. Cremos que nas três passagens de Marcos (1, 24; 14, 67 e 26, 6) o nome Nazarenos, tem um final latinizado e, portanto, equivale ao grego geográfico Nazöraios. Pois a terminção os é própria do patronímico grego, enquanto a nus é própria do latim. Estavam tristes, porque esse Jesus era PROFETA [profëtës <4396>=propheta]. Tanto o grego como o latim acrescentam homem (anër/vir) de modo a ser a tradução varão profeta a mais exata. Fundamentalmente profeta é quem fala em nome de Deus, iluminando e orientando a vida e a história do povo, denunciando tudo que seja ruptura com  a aliança. Jesus reivindica para si mesmo essa condição de profeta (Mt 13, 57, Lc 13, 33 ; Jo 6, 14 e 7, 40). Poderoso em obra e palavra. Dos profetas do AT sabemos que pelo menos Elias e Eliseu realizaram milagres além de falar em nome de Jahveh. E este poder extraordinário foi em Jesus testemunho de sua palavra como procedente de Deus: Se não credes em mim, crede nas obras (Jo 10, 38). Por isso, era profeta diante de Deus e de todo o povo. Como muitas vezes, a palavra Deus está acompanhada do artigo determinante o que ressalta o verdadeiro Deus dos muitos deuses pagãos da época. Os chefes dos sacerdotes [archiereis <749> = summi sacerdotum]. A maioria das versões vernáculas traduz por sumos sacerdotes (exemplo TEB). É verdade que um sumo sacerdote mantinha o título por vida e que em tempos de Jesus exixtiram muitos que obtiveram o título porque o cargo era venal e mudava quase anualmente; Josefo fala que houve 28 sumos pontífices entre Herodes e os anos 64, um total de 170 anos, o que dá um a cada dois anos e meio. Mas, neste caso, significa chefes dos sacerdotes (príncipes de los sacerdotes –diz Nácar Colunga e a KJB fala de chief priests), como parece indicar o latim [summi sacerdotum], que segundo Josefo eram os chefes das principais famílias além dos que tinham sido sumos pontífices e o atual chamado Nasi, que presidia a tribuna, o Sagan, o tesoureiro do templo e outros. E os nossos dirigentes [archontes <75,8> = príncipes], que também eram chamados de bouletes [conselheiros] ou dygnatoi, [dignatários] que eram os aristocratas das famílias mais ricas da cidade. Lucas, que em 9, 22, claramente alude aos três componentes do sinédrio, aqui não diz nada sobre a terceira parte do mesmo que era formada pelos escribas. Sem dúvida que estes últimos, como respeitados pelo povo, tinham entre seus membros Nicodemos que se opôs à condena de Jesus (Jo 7, 50). O entregaram [paredökan <3860>=tradiderunt] O verbo tem como significado entregar uma pessoa ou coisa nas mãos de outra. Daí atraiçoar como em Mt 5, 25 te entregue nas mãos do juiz. A entrega terminou com a morte em cruz, a mais horrível e humilhante para um romano e a mais maldita para um judeu. Deus não podia permitir semelhante morte para um profeta seu. Morrer nas mãos do príncipe inimigo, como o Batista nas de Herodes Antipas, era um martírio; mas na cruz era uma maldição.

ESPERANÇA VÃ: Já que nós esperávamos que viesse libertar Israel. Mas já sobre estas coisas prevalece o terceiro dia desde que passaram elas (21). Nos autem sperabamus quia ipse esset redempturus Israhel et nunc super haec omnia tertia dies hodie quod haec facta sunt. E explicam a causa de sua tristeza que, em definitivo, é uma perda de esperança: Jesus tinha fomentado a esperança messiânica [libertação de Israel] e agora tudo acabou. Nestas palavras está resumido o sentimento mais profundo e a alma de todos os discípulos de Jesus. Tanto esforço, tanta ilusão perdida. Tudo foi um sonho bonito que agora se transforma em dolorosa desilusão. Eram três dias de profunda tristeza, como o Mestre tinha anunciado Klausete [plorabitis=lamentareis] e thrënësete [flebitis= chorareis] (Jo 16, 20), como faziam as plangentes na morte dos que pranteavam.

OS RUMORES: Mas também certas mulheres das nossas nos deixaram surpresos havendo estado muito de manhã sobre o túmulo (22). E não tendo encontrado o corpo dele, voltaram dizendo também ter visto uma visão de anjos os quais dizem que ele está vivo (23). E alguns dos que estavam conosco foram ao sepulcro e encontraram assim como as mulheres falaram, mas a ele não viram (24). Sed et mulieres quaedam ex nostris terruerunt nos quae ante lucem fuerunt ad monumentum et non invento corpore eius venerunt dicentes se etiam visionem angelorum vidisse qui dicunt eum vivere et abierunt quidam ex nostris ad monumentum et ita invenerunt sicut mulieres dixerunt ipsum vero non viderunt. Havia, porém uma coisa estranha que eles duvidavam fosse realidade interessante: Temos traduzido o mais literalmente possível, respeitando tempos de verbos e significado das palavras. O caso é que os dois discípulos se mostraram tão céticos como hoje muitos dos leitores do evangelho, que só admitem como históricos o sepulcro vazio e a ausência do corpo. As visões e aparições são tidas como imaginárias, sem fundamento real. Jesus não aparece como apareceu Nossa Senhora aos pastorinhos de Fátima. A Virgem não era vista pelos assistentes. Era, pois, uma aparição interna sem que uma máquina fotográfica pudesse recordar a cena. Mas no evangelho de hoje temos a resposta: ele tinha um corpo como um homem qualquer. Precisamente a ¨cegueira¨ dos dois discípulos de Emaús, indica que ele não foi uma aparição do tipo que certos teólogos indicam: ele, para todos os efeitos, era de carne e osso, indistinguível como se fosse um homem comum. Os evangelistas distinguem perfeitamente a visão dos anjos [vestes resplandecentes], que podem ser semelhantes às aparições de Fátima,  das aparições de Jesus durante os 40 dias: é o mesmo Jesus de sempre, o Jesus ainda não transformado porque não tinha ido ao Pai (Jo 20, 17). Quer dizer que só depois da Ascensão ele tomou o corpo espiritual que dirá Paulo (1 Cor 15, 43-45)? É uma hipótese que não tem nada contra a teologia e que não pode ser descartada, já que a visão de Paulo de Jesus Ressuscitado parece ser uma visão, cuja fonte era a luz (At 9, 3). Neste trecho, escrito muito antes do evangelho de João, segundo o que nos diz a tradição, temos um resumo das primeiras aparições de Jesus que concorda plenamente com o relato joanino. Estes dois evangelistas devem ser tomados como base real do sucedido e não como descrição catequética do mesmo.

APOLOGIA DE JESUS: Então ele lhes disse: Ó sem inteligência e tardos no coração para crer em todas (as coisas) que falaram os profetas! (25). Et ipse dixit ad eos o stulti et tardi corde ad credendum in omnibus quae locuti sunt prophetae. Começa censurando-os: Sem entendimento e tardos de mente [coração no original]. Usando termos mais claros poderíamos traduzir por tontos e estúpidos, não no sentido de um insulto, mas de um fato certamente real e comprovável. A compreensão das Escrituras não depende unicamente da graça de Deus, mas também da disposição de ânimo do leitor. Com uma mente perturbada por prejuízos como a dos saduceus, que não admitiam a ressurreição, era impossível admitir a de Cristo. Com uma mente como a moderna em que o milagre é menosprezado, é lógico que os relatos dos evangelhos sejam tomados exatamente como os das mulheres foram aceitos pelos discípulos: lendas, fantasias.

A INTERPRETAÇÃO: Certamente, não convinha Cristo padecer essas coisas e entrar na sua glória? (26). E começando desde Moisés e desde todos os profetas interpretava-lhes em todas as Escrituras os (acontecimentos) acerca dEle (28). Nonne haec oportuit pati Christum et ita intrare in gloriam suam. Et incipiens a Mose et omnibus prophetis interpretabatur illis in omnibus scripturis quae de ipso erant. Jesus, como companheiro de viagem, se torna agora mestre de sabedoria para interpretar as Escrituras, fazendo apologia de sua paixão: Era necessário que o Ungido [Messias] padecesse, para assim entrar na sua glória [a posse do seu reino]. O verbo Deo [<1163>=oportuit] significa atar, e em termos teóricos obrigar, por estar sujeito a uma lei. O singular impessoal dei significa uma obrigação iniludível, porque estava escrito, isto é: era um plano de Deus transmitido através dos profetas (25). E começando por Moisés, diz Lucas. Na realidade, Moisés diretamente não fala do Messias a não ser  em Dt 18, 15: Javé, teu Deus suscitará um profeta como eu, no meio de ti, dentre os teus irmãos, e vós o ouvireis. Temos uma outra citação em Gn 3, 15: A descendência da mulher esmagará tua cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar. Porque o Pentateuco era o livro escrito por Moisés, ao menos substancialmente. Além destas profecias que podemos chamar diretas e que são as únicas que nos tempos modernos aceitamos como verdadeiras, não podemos esquecer que, muitas vezes, os antigos viam na Escritura tipos e imagens do futuro como verdadeiras profecias. Entre esses tipos temos Isaac levando a lenha para o sacrifício que ia ser executado pelo pai, mas que no último momento foi substituído por um carneiro (Gn 22, 6-14). Temos a serpente de bronze, da qual o próprio Jesus comentou que era sua figura (Nm 21, 8 e Jo 3, 14). Também podemos ver nos sacrifícios ordenados por Moisés, figuras do sacrifício de expiação pelos pecados da Nova Aliança de Jesus, especialmente no dia do Yom Kippur pelo holocausto do bode expiatório (Lv cap 9), que a epístola aos hebreus, no capítulo 9, afirma ser figura imperfeita de Jesus. Pelo que diz respeito aos outros profetas, tais como Davi nos salmos 22, 1-31, Isaías 53, 1-12 e Daniel 9, 1-27 as referências são muito notáveis. Por isso Jesus interpretava as Escrituras, embora não saibamos em que termos, pois o evangelista não o declara.

FICA CONOSCO: Então se aproximaram da vila para a qual caminhavam e Ele pareceu passar adiante (28). E o coagiram dizendo: fica conosco já que é a tarde e o dia declina. Então entrou para ficar com eles (29).  Et adpropinquaverunt castello quo ibant et ipse se finxit longius ire. Et coegerunt illum dicentes mane nobiscum quoniam advesperascit et inclinata est iam dies et intravit cum illis. Só devido a uma pequena dificuldade para a volta, vamos explicar o vocábulo grego por TARDE [espera <2073> =advesperascit]. De fato, o original diz que é a tarde [substantivo] e não que é tarde [adjetivo, fora do tempo]. A Vulgata com o verbo advesperascit indica que já chegou a tarde. Esta começava às três horas, e era o momento do almoço. O dia, ou melhor, a luz do dia acabava às seis horas.

AO PARTIR O PÃO: E sucedeu ao se recostar ele com eles, tomando o pão, (o) abençoou e tendo (o) partido (o) dava a eles (30). Et factum est dum recumberet cum illis accepit panem et benedixit ac fregit et porrigebat illis. Segundo a Mishná, se são três os que devem comer juntos, são obrigados a benzer a mesa, porque se são três os que comem juntos não podem separar-se para a bênção (Berajot 7, 4). Segundo a tradição judaica, na liturgia da Páscoa após a segunda copa,  copa de Haggadá [das narrações da tradição] se iniciava o banquete com a bênção da mesa, feita pelo pater-famílias sobre o pão ázimo: tomava o pão e o abençoava com estas palavras: Louvado sejas tu, Senhor nosso Deus, Rei do mundo que fazes sair o pão da terra. Os comensais respondiam Amém; e, na continuação, o pai de família repartia o pão. O pai da casa tomava o último pedaço e começava a comer; com isso ele dava o sinal para todos de que o banquete tinha começado.

OS OLHOS SE ABRIRAM: Os seus olhos então se abriram e conheceram-no e Ele se tornou invisível para eles (31). Et aperti sunt oculi eorum et cognoverunt eum et ipse evanuit ex oculis eorum. É precisamente nesta bênção e no partir o pão que os dois discípulos reconhecem a pessoa de Jesus. Os olhos se abriram e o reconheceram. Os três sinóticos  falam de como Jesus, erguendo os olhos ao céu (exemplo Lc 9, 18) e abençoando o pão partiu-o e o entregou a seus discípulos. A oração, entre os judeus, sempre se fazia com o olhar baixo, em sinal de submissão; e Jesus pronunciava o nome de Pai no lugar do Adonai usual entre os conterrâneos. Os olhos, que estavam travados, agora reconheceram o Mestre; mas não puderam gozar da visão por muito tempo, porque a figura que foi seu acompanhante  no caminho, agora se desvaneceu. Ele se tornou invisível [afantos] a eles. A palavra grega indica um não ser visto, um desvanecer ou desaparecer. Indica que é assim que nós vamos encontrar o Cristo: desvanecido nas Escrituras, e sem poder ver seu rosto, que pela fé encontramos no partir o pão, como os dois contaram aos onze [que na realidade eram dez] após a volta de Emaús.

OS DISCÍPULOS: Então disseram entre si: não estava ardendo nosso coração dentro de nós enquanto falava conosco no caminho e nos abria as Escrituras?(32). E tendo se levantado, na mesma hora, voltaram para Jerusalém e encontraram reunidos os onze e os que (estavam) com eles (33), dizendo que ressuscitou o Senhor verdadeiramente e foi visto por Simão (34). Et dixerunt ad invicem nonne cor nostrum ardens erat in nobis dum loqueretur in via et aperiret nobis scripturas. et surgentes eadem hora regressi sunt in Hierusalem et invenerunt congregatos undecim et eos qui cum ipsis erant dicentes quod surrexit Dominus vere et apparuit Simoni. Somente eram dez, mas como Lucas não narra a aparição particular a Tomé, daí que ele o inclua entre os apóstolos e fala dos onze. Quando chegam os de Emaús que particularmente não pertenciam aos onze, encontram junto com estes, outros discípulos congregados e falando de que realmente Jesus tinha ressuscitado e tinha sido visto por Simão [Pedro]. Esta aparição é confirmada por Paulo: Apareceu a Cefas e depois aos doze (1 Cor 15, 5). Vemos como aqui também o número 12 é usado como uma relação genérica, sem incluir no caso a Judas e Tomé.

SEU TESTEMUNHO: Então eles contaram as coisas no caminho e como foi por eles conhecido ao partir o pão (35). Et ipsi narrabant quae gesta erant in via et quomodo cognoverunt eum in fractione panis. Então eles acrescentaram sua história que, além de vê-lo vivo, continha uma lição de como interpretar as Escrituras. Jesus não olvidava seu ministério de Rabi, como Mestre de seus discípulos. É um fato, que muitos exegetas apresentam como significativo, que Ele fosse reconhecido ao partir o pão. Ele foi pela primeira vez reconhecido como rei após a primeira multiplicação dos pães, quando os abençoou e partiu (Mt 14, 19) e depois mandou que os discípulos os dessem à multidão. Esse foi o momento em que a multidão o declarou como o profeta que deveria vir ao mundo e alguns até queriam torná-lo rei (Jo 6, 14-15). Foi também ao partir o pão que Ele foi reconhecido pelos dois discípulos.

PISTAS: 1) A pergunta inicial: Por que a vida é sempre vencida pela morte? Por que o mal sempre triunfa do bem? O Pai abandona o Filho Jesus, ou este era simplesmente um impostor? Essencialmente as perguntas que se faziam os dois discípulos eram estas. Jesus não usa o raciocínio humano para responder, mas os escritos sagrados. Sem Jesus, as Escrituras não têm mais sentido que o dado pela comemoração de uma História particular e parcial do povo hebreu. Em Jesus encontraremos a culminação da História e a razão de nossa história porque em Jesus encontramos a justificação de como o mal deve ser vencido pelo bem: pelo sacrifício da própria vida para que, perdendo-a, outros a encontrem e a vivam melhor.

2) S. Agostinho afirma que o Senhor foi conhecido ao partir o pão; e também o conheceremos hoje ao partir o pão: a) O pão da Eucaristia onde o encontramos substancialmente. b) O pão repartido entre os necessitados, com os quais ele quis se identificar.

3) A vida, como uma dádiva de Deus, está se tornando uma circunstância para gozar da mesma sem sentido de solidariedade. Os cristãos não  param na dádiva, mas no Senhor da mesma e vemos, como sendo Ele amor e ela produto do amor, devemos responder com amor. Ou seja, como entrega e não como posse definitiva. Por isso o padecer temporal é a base para a glória definitiva.

4) Apareceu a Simão: ele era o irmão que devia manter a fé dos irmãos (Lc 22, 32). A contrariedade e o sofrimento nos tornam fracos em nossa fé. Mas é aí onde a fortaleza de Deus se manifesta (2 Cor 12, 10). Os judeus pediam milagres e profecias (Lc 22, 64 e 23, 8) e os romanos poder, porque, quando Pilatos ouviu que Jesus veio a dar testemunho da verdade, o desprezou (Jo 18, 38). Mas é essa verdade que Jesus afirma: o Messias deve sofrer e assim unicamente entrar na glória do seu reino (25).

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