Comentário Exegético – III Domingo de Páscoa – Ano B

EPÍSTOLA (1Jo 2,1-5ª)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 

INTRODUÇÃO: Esta parte é uma censura contra os gnósticos, cuja ética se reduzia ao conhecimento, sem que as obras fossem parte da moral para uma união com Deus definitiva, na qual consistia a felicidade última, ou se quisermos, a salvação. Não basta conhecer, é necessário guardar os mandatos, pois nisto consiste o amor de Deus, que deve ser perfeito para nEle estar em união e gozar de sua vida. O pecado, a transgressão dos mandatos, é a maior oposição a esse amor. Não devemos pecar; mas caso o fizermos temos um advogado [paraklëtos] defensor, que é Jesus Cristo, o qual é expiação ou se oferece como pagador pelas dívidas devidas aos pecados de todo o mundo. Não guardar os mandatos divinos é não conhecer a Deus, porque a perfeição é precisamente observar os mesmos. Nesta linha, o apóstolo dirá que quem permanece em Deus não peca; e, portanto, quem peca nem O viu nem O conhece (3,6). O pecado é próprio do diabo, que foi desde seu início pecador. O nascido de Deus não pode pecar porque tem nele a semente divina, contrária ao pecado. Este trecho, como em geral a carta, foi escrito contra duas heresias: os antinomos [contrários à Lei] que afirmavam que só a fé era suficiente, podendo viver como quiser; e os perfeccionistas que afirmavam que o pecado estava tão destruído que era como um câncer extirpado de modo que toda ação de um fiel não era pecado ao estilo dos perfeitos albigenses do século XII ou quietistas de Miguel de Molinos do século XVII.

     O ADVOGADO: Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis e se alguém pecar temos um advogado junto ao Pai Jesus Cristo [o] justo(1). Filioli mei haec scribo vobis ut non peccetis sed et si quis peccaverit advocatum habemus apud Patrem Iesum Christum iustum. Como em toda exortação, que é uma pequena reprimenda, João usa palavras suaves chamando seus leitores de FILHINHOS [teknia<5040>=filioli]. A palavra é um diminutivo de teknon<5943>= filho em sentido amplo como pode ser um adotado. Teknion é a palavra predileta de João; Aparece uma vez nos evangelhos e precisamente no evangelho joanino; e, com a exceção de Gl 4, 19 em Paulo, as outras 7 vezes unicamente nesta carta de João. PEQUEIS [amartëte <264>=peccetis] é o aoristo subjuntivo do verbo amartanö, fazer o mal, pecar, como em 1 Cor 7, 28: Mas, se te casares, não pecas; e, se a virgem se casar, não peca. Esse pecado pode ser contra Deus, como recitamos no Pai Nosso (Mt 6, 12); ou pecado contra o próximo (Mt 18, 15: se teu irmão pecar contra ti); ou contra si mesmo (1 Cor 6, 16: Fugi da prostituição. Todo o pecado que o homem comete é fora do corpo; mas o que se prostitui peca contra o seu próprio corpo); ou contra a lei (At 28, 5: Paulo, em sua defesa, disse: Eu não pequei em coisa alguma contra a lei dos judeus, nem contra o templo, nem contra César). O pecado é substancialmente desobediência, como foi o primeiro de Adão: Pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um muitos serão feitos justos (Rm 5, 19). ADVOGADO [paraklëtos <3875>=advocatus], o grego significa advogado, intercessor, ajudante, e unicamente este vocábulo é usado por João 4 vezes no evangelho e uma nesta carta. Nas 4 vezes que aparece no evangelho a Vulgata conserva o grego [paracletus] e unicamente na carta traduz por advocatus, mas tenhamos em conta que aqui o paraklëtos não é o Espírito Santo, mas Jesus. Ele é o defensor dos pecadores, ou como diz Paulo, o intercessor: Quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu, ou antes, quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós (Rm 8, 34). O que é confirmado em Hb 7, 25. JUSTO [dikaios<1342> =iustus], a palavra dikaios significa homem que observa a lei como era José, esposo de Maria (Mt 1, 19). Na linguagem bíblica justo é oposto a pecador como em Mt 9, 13; eu não vim a chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento. Serão assim chamados os salvos que estão à direita do juiz no último dia (Mt 25, 37). Pelo que respeita ao evangelho de João, temos 3 versículos em que entra a palavra dikaios: 5, 30 7; 5,24 e 17, 25. O último se refere ao Pai: Pai justo, o mundo não te conheceu; mas eu te conheci, e estes conheceram que tu me enviaste a mim. Nesta epístola o epíteto é dirigido a Jesus em três ocasiões: Esta de 2,1; em 2, 29 e 3,7 todas elas diz respeito à bondade de Cristo, como regra em que nossa conduta deve ser medida, ou bondade que olha o pecador com olhos de misericórdia, pelo que na continuação escreve na carta.

 PROPICIAÇÃO: Porque ele é propiciação por nossos pecados, não só, porém,  dos nossos, mas também pelos de todo o mundo (2). Et ipse est propitiatio pro peccatis nostris non pro nostris autem tantum sed etiam pro totius mundi. PROPICIAÇÃO [ilasmos <2434> =propitiatio] é expiação, ou seja, sacrifício pelos pecados, apaziguamento, conciliação. O termo é próprio de João nesta carta e só o encontramos de novo em 4, 10: Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou a nós, e enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados.  É a palavra usada em 2 Mc 3, 33: Enquanto o Sumo Sacerfote oferecia o sacrifício de expiação [ilasmon] apareceram a Heliodoro os mesmos jovens [dois anjos]. Paulo prefere ilastërion (Rm 4, 25) assim como Hb 9, 5: Sobre a arca os querubins da glória, que faziam sombra no propiciatório. O mesmo autor explica qual é esta expiação: Convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar  [ilaskesthai] os pecados do povo. E Paulo estende esta propiação a todo o mundo. De alguma maneira que não conhecemos, a expiação, que é pagamento pelo mal causado, chega a todos os homens. A uns para salvação, a outros para diminuir o castigo temporal, ou em qualidade ou intensidade, o eterno e sempre pelos pecados.

     VERDADEIRO CONHECIMENTO: E nisto sabemos que o temos conhecido, se guardamos os seus mandatos (3). Et in hoc scimus quoniam cognovimus eum si mandata eius obs ervemus. SABEMOS [ginöskomen<1097>=scimus] presente do verbo ginöskö, de significado saber, conhecer, entender, perceber, realizar, reconhecer, apreciar; e em sentido metafórico, ter relações sexuais. A frase, ao repetir o mesmo verbo [ginoskö], deve ter o significado que encontramos em Jr 31, 34: Não ensinará mais cada um a seu próximo, nem cada um a seu irmão, dizendo: Conhecei o SENHOR; porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles, diz o SENHOR; porque lhes perdoarei a sua maldade, e nunca mais me lembrarei dos seus pecados. É, pois, ter um trato íntimo com Deus como amigo e senhor, ao mesmo tempo. Jesus dirá em Jo 10, 14: Eu sou o bom Pastor, e conheço as minhas ovelhas, e das minhas sou conhecido  Por isso, João fala de que o verdadeiro conhecimento de Deus consiste em observar seus mandatos ou mandamentos. Como dirá mais tarde, o critério de que verdadeiramente conhecemos Deus, é o amor: Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor (4,8). Pois quem está em amor está em Deus, e Deus nele (4,16). E é precisamente a prática desse amor, a caridade com o próximo, que distingue o verdadeiro do falso discípulo de Cristo: Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros (Jo 13, 35). E nesta carta afirma: Conhecemos o amor nisto: que ele deu a sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos irmãos. A importância do verbo ginoskö nos escritos joaninos é clara: mais de 40 vezes no evangelho e 21 nesta pequena carta. Indica a unidade de autor dos dois escritos sagrados.

O MENTIROSO: Aquele que diz que o conheceu e que não guarda seus mandatos é mentiroso e nele não existe verdade (4). Qui dicit se nosse eum et mandata eius non custodit mendax est in hoc veritas non est. MENTIROSO [pseustës <5583>=mendax]. Mentir é dizer o contrário do que se pensa. Para conhecer o amor é preciso amar; e amar é conhecer verdadeiramente o nosso Deus; aí temos o amor autêntico: Não pode existir contradição entre a palavra amor e o fato de amar, que é guardar os mandatos divinos. Com a mesma segurança que afirma que se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós (1 Jo 1, 8), o apóstolo declara que se dissermos que temos comunhão com Ele e andarmos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade (1, 6). E termina com um argumento fácil de compreender: Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu [que está presente], como pode amar a Deus, a quem não viu [que é ausente]?(4,20).

     A PERFEIÇÃO: Aquele, pois, que guardar sua palavra, verdadeiramente nele o amor de (o) Deus tem sido aperfeiçoado; nisto conhecemos que estamos nEle (5). Qui autem servat verbum eius vere in hoc caritas Dei perfecta est in hoc scimus quoniam in ipso sumus. No seu evangelho, João declara as mesmas ideias: Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele (Jo 14, 21). E também: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada (idem 23). APERFEIÇOADO [teteleiötai<5048> =perfeito] é o indicativo perfeito passivo do verbo teleioö com o significado de completo, acabado, perfeito, terminado, como em Jo 4, 34: Jesus declarou: A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou, e terminar a sua obra. É por isso que nesta carta o apóstolo conclui: Se nos amamos uns aos outros, Deus está em nós, e em nós é perfeito o seu amor. Nisto conhecemos que estamos nEle, e Ele em nós, pois que nos deu do seu Espírito (1 Jo 4, 12-13). Assim, João afirma que a perfeição consiste no amor, de modo que sejamos templos do Espírito de Deus. Se outra deidade ou amor se apodera de nosso coração somos como idólatras que adoramos um outro deus que pode ser o dinheiro (Mt 6, 24), o egoísmo, o bem-estar ou a honra como era o caso dos fariseus, que amam os primeiros lugares nas ceias e as primeiras cadeiras nas sinagogas, e as saudações nas praças, e de serem chamados pelos homens; Rabi, Rabi.  (Mt 23, 6-7). S. José de Calasanz em suas constituições disse que a perfeição da vida cristã está no amor. E até que este amor não seja perfeito não entraremos no Reino definitivo. O contrário do Inferno em que o amor próprio será quem rejeita Deus até imperar o ódio a todo bem, que não é verdadeiro fora de Deus, e como Deus é o único bem completo (Mc 10, 18) a Ele odeiam de modo especial e definitivo. Como vemos, há uma lógica permanente entre os ensinamentos de Jesus e as declarações de seus discípulos: é a razão iluminada pela fé, que no mundo intelectual de alguns teólogos com o vírus germânico – como diz um autor – se transformou na fé iluminada pela razão.

 

EVANGELHO (Lc 24, 35-48)

APARIÇÃO AOS DISCIPULOS EM JERUSALÉM

Lugares paralelos:

(Mt 28, 16-20; Mc 16, 14-18 e Jo 20, 19-23)

 

O evangelho é continuação do episódio dos dois discípulos de Emaús, que estão contando sua experiência ao grupo dos discípulos reunidos em Jerusalém. É surpreendente que dentro da conversa os outros discípulos estavam conformes em acreditar na ressurreição de Jesus porque este tinha sido visto por Pedro (Lc 24, 34). E então, diante de um grupo propenso a admitir a verdade sem ter visto as provas, mas só pelo testemunho dos videntes, é que Jesus aparece. E é precisamente nesta visão que deveria ser esperada que o discípulos acreditam ver um fantasma. Por que? A explicação é dada por João no seu evangelho: As portas estavam trancadas e embora admitissem Jesus ressuscitado não pensavam que ele podia atravessar muros e portas. Além disso, a aparição foi instantânea, como claramente o indica João e afirma Lucas ao dizer que esteve no meio deles [estê en mesô autôn], um aoristo de ação repentina que a bíblia de Jerusalém traduz apropriadamente por se apresentou no meio deles, e que temos traduzido por ficou de pé no meio deles, como o latim registra: stetit. Segundo Lucas, a finalidade da aparição é 1º) acabar com as dúvidas sobre sua ressurreição; 2º) confirmá-los na certeza de que Jesus cumpriu perfeitamente os planos divinos, profetizados desde Moisés através de todos os profetas, especialmente sobre sua paixão e ressurreição; 3º) que eles estavam designados a proclamar o perdão dos pecados a todas as nações em seu nome; 4º) e finalmente, que de tudo isso eles deveriam se tornar testemunhas. Podemos dizer que Lucas resume numa única aparição e em poucos parágrafos o que talvez tivesse acontecido em circunstâncias diversas. Vamos explicar passo a passo o evangelho de hoje.

A NARRAÇÃO: E eles declaravam as coisas do caminho e como foi conhecido por eles na fração do pão (35).  Et ipsi narrabant quae gesta erant in via et quomodo cognoverunt eum in fractione panis. Os dois diziam, ou melhor, interpretavam, pois esse é o sentido do verbo exêgeomai, quando alguma divindade tinha falado ou revelado alguma verdade. O sentido era que, não unicamente, narravam como tinham conhecido o Ressuscitado, mas, o sentido das palavras reveladoras sobre a paixão e morte que foram explicadas como necessárias pelo viajante, que no caminho os acompanhou. A outra revelação era de que eram intérpretes de como foi a fração do pão, que foi a razão de entender quem realmente era o companheiro de viagem. Sem dúvida que Jesus quis ressaltar o sacramento da Eucaristia que foi chamado de fração do pão, no início, como diz o livro dos Atos em 2, 42 em que o texto grego traz a mesma palavra Klasis. Essa comunhão de comida e bebida é logo ressaltada no final deste evangelho quando Jesus pede alguma coisa para comer.

A APARIÇÃO: Falando, pois, estas coisas ele, Jesus, se apresentou no meio deles e diz a eles: paz para vocês (36). Dum haec autem loquuntur Iesus stetit in medio eorum et dicit eis pax vobis ego sum nolite timere. Nada a comentar a não ser o dito no domingo anterior sobre o fato de se apresentar Jesus com as portas fechadas, como diz João. A paz era uma saudação comum neste caso.

A REAÇÃO: Tendo ficado, portanto, espantados [ptoêthentes] e temerosos, pensavam ver um espírito (37). Conturbati vero et conterriti existimabant se spiritum videre. O verbo ptoetheô indica espanto, susto, perturbação. Além desse espanto como temos traduzido, o ânimo dos discípulos encheu-se de medo: a razão é que pensavam ser um espírito a figura que viam diante deles. Espírito que não se diferenciava de um fantasma. Era a mesma reação que tiveram quando viram Jesus caminhando sobre as águas (Mt 14, 26 e Mc 6, 49). O verbo é unicamente empregado por Lucas numa outra ocasião em 21, 9 ao ficarem aterrorizados ou atemorizados por causa das guerras e subversões anteriores à destruição de Jerusalém. O medo, pois, dominava todos eles e a razão é que pensavam fosse um espírito ou um fantasma. No caso do lago, o medo fez com que eles gritassem. Agora o medo paralisou a reação até que Jesus os acalmou com suas palavras.

JESUS OS TRANQUILIZA: E disse a eles: Por que estais perturbados e qual a causa de que surjam hesitações nos vossos corações? (38). Et dixit eis quid turbati estis et cogitationes ascendunt in corda vestra? Era uma reprimenda e ao mesmo tempo uma solução para os problemas suscitados pela dúvida e depressão dos últimos acontecimentos. Podemos ler a resposta de Jesus dada aos de Emaús: insensatos e lentos de coração [duros de cabeça] para crer tudo que os profetas anunciaram!

A PROVA: Vede minhas mãos e meus pés; porque eu mesmo sou! Apalpai-me e vede porque um espírito carne e ossos não têm, como me vedes tendo (39). Videte manus meas et pedes quia ipse ego sum palpate et videte quia spiritus carnem et ossa non habet sicut me videtis habere. Temos traduzido muito literalmente o grego. Estas palavras indicam que Jesus se apresentou como um homem normal com as mesmas características que tinha na vida mortal que os discípulos tão bem conheciam. Daí oti autos egô eimi que podemos traduzir livremente por sou o mesmo que vocês conhecem, não é outra pessoa a que estais vendo. E em vista disso, anima-lhes a apalpar seu corpo e a ver mãos e pés que estavam com os sinais das chagas. Se estas palavras têm algum sentido histórico, ele é o de manifestar que Jesus está vivo, que a morte não o venceu, que a vida do além pode ter momentos em que se parece com a vida anterior, como se esta seguisse e aquela fosse uma continuação. Sobre o modo de pensar de alguns teólogos que dizem que a ressurreição é uma forma de vida só espiritual, vemos como Jesus se manifesta em corpo vivo e que não existe sentido em afirmar que só o espírito vive e o corpo como que se destrói e não alcança a nova vida. Como diz o catecismo é impossível interpretar a ressurreição de Cristo fora da ordem física e não reconhecê-la como um fato histórico…. Pois o corpo ressuscitado é o mesmo que foi martirizado e crucificado,  pois ainda traz as marcas de sua Paixão… Não constitui uma volta à vida terrestre… como foi o caso de Lázaro, pois seu corpo possui propriedades novas que o situam além do tempo e do espaço…ele passa de um estado de morte para uma outra vida, participando da vida divina no estado de sua glória de modo que Paulo pode chamar a Cristo de o homem celeste.

A DEMOSTRAÇÃO: E tendo dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés (40). Et cum hoc dixisset ostendit eis manus et pedes. Lucas resume, numa única aparição, as duas que João narra em domingos alternados. Lucas também amplia a descrença e a dúvida ao conjunto, o que parece não ser totalmente conforme com a realidade, segundo vemos em Mateus 28, 17 onde lemos que alguns duvidaram. Para João, o incrédulo foi Tomé, o Dídimo [gêmeo] e a este mostrou mãos e costado. A explicação é que João foi o único que esteve presente à crucifixão e ao enterro e sabia da ferida do costado. É lógico que Lucas falasse de pés e mãos por desconhecer a ferida do lado que não era detalhe comum entre os condenados à cruz.

AINDA INCRÉDULOS: Ainda, pois, não crendo eles pela alegria e estando maravilhados, disse a eles: tendes comida aqui? (41). Adhuc autem illis non credentibus et mirantibus prae gaudio dixit habetis hic aliquid quod manducetur. Parece que nem todos acreditaram mesmo vendo as feridas, ou pensavam que era Jesus em espírito ou como um fantasma, mas não como uma realidade. Aquele que viam era Jesus, porém, não como um ente corpóreo mas como um ente espiritual, como um fantasma. O verbo thaumazô indica tanto admiração como assombro, maravilha, enfim um trauma que impede racionar corretamente e ver as coisas com a inteligência. Estavam absortos, sem poder reagir de modo racional. Por isso, Jesus apela à última razão: os espíritos não comem, porque não têm corpo. E ele tinha corpo; por isso ele mostrou sua realidade corporal, pedindo comida que lhe foi oferecida de imediato.

A COMIDA: Então eles lhe entregaram uma parte de peixe cozido e de um favo de mel (42). At illi obtulerunt ei partem piscis assi et favum mellis. E havendo tomado, na vista deles, comeu (43). Et cum manducasset coram eis sumens reliquias dedit eis. Como vemos, o latim diz que Jesus não terminou a comida, mas deixou parte da mesma. Não era a intenção saciar uma fome, mas demonstrar uma realidade da qual os discípulos podiam duvidar. O favo de mel falta nalguns manuscritos assim como tomando as sobras lhas deu a eles como aparece no latim. Não só com essa ação demonstrou Jesus a sua corporeidade aos discípulos, mas também a todos os que querem ler os evangelhos como uma tradição da Igreja e do que esta pensava e sentia nos primeiros momentos. Os discípulos estavam certos de que Jesus tinha um corpo e não era puro espírito.

A JUSTIFICAÇÃO: Então lhes disse: estas mesmas [são] as palavras que falei diante de vocês quando ainda estava com vocês: que era necessário se cumprissem todas as [coisas] escritas na lei de Moisés e nos profetas e nos salmos acerca de mim (44). Et dixit ad eos haec sunt verba quae locutus sum ad vos cum adhuc essem vobiscum quoniam necesse est impleri omnia quae scripta sunt in lege Mosi et prophetis et psalmis de me. Com esta afirmação Jesus se afirma na ideia de que ele estritamente cumpriu as Escrituras, que antes de sua paixão já tinha explicado a seus discípulos. Esta divisão tríplice das Escrituras é a única que encontramos nos evangelhos. Com isso Jesus indica que não há parte da Escritura que não dá testemunho de Jesus. Eram profecias escritas na lei de Moisés [Pentateuco] nos Profetas [livros históricos, sapienciais e profetas propriamente ditos] e nos Salmos [livros litúrgicos]. Em definitivo, toda a Escritura. Com isso, Jesus se distancia dos saduceus e dos samaritanos, que só admitiam como Escritura autêntica o Pentateuco. A dúvida é em que passagem de Moisés, entendido como o autor do Pentateuco, está escrita sobre Jesus e sua paixão. A resposta é dada por Pedro: Moisés falou: Deus vos suscitará dentre os vossos irmãos um profeta semelhante a mim; vós o ouvireis em tudo o que ele vos disser. E todo aquele que não escutar esse profeta, será exterminado do meio do meu povo (At 3, 22-23). Por isso, nos evangelhos lemos várias passagens em que se diz que de Jesus escreveu Moisés (Lc 24, 27; Jo 1, 45 e 46 e 5, 46). Evidentemente o escrito de Moisés é sobre o novo profeta que seria como ele foi: o legislador. A lei de Jesus, segundo Jo 1, 17, era contra a lei mosaica, uma oferta de graça e verdade, ou seja, de amor e de fidelidade [logicamente da parte de Deus por meio de Jesus]. Moisés essencialmente falou desse novo povo que devia escutar Jesus como escutou em seu dia, Moisés. E o exemplo de Moisés que içou a serpente no deserto é o modelo de Jesus levantado na cruz. Segundo os padrões da época esse exemplo que entrava dentro dos haggadoth [parte integrante do Talmud como narrações ilustrativas da Lei] era uma profecia da morte de Jesus para salvar todo o povo que a ele olhasse no meio de suas angústias de morte. Um outro exemplo era o maná que Moisés usou para alimentar os hebreus no deserto. Também Jesus, e por duas vezes, no deserto alimentou o povo multiplicando pães e peixes (Mt 14, 13-21 e 15, 32-38) e dessa multiplicação Jesus tirará uma consequência baseada em Moisés para afirmar que o verdadeiro pão do céu era sua própria pessoa descida do céu e transformada em comida e bebida (Jo cp 6). Pelo que diz respeito aos profetas, o servo de Isaías sofredor é o melhor exemplo de Jesus nos capítulos 52 e 53. E os salmos, basta ler o salmo 22. Alguns autores, levados de um espírito moderno, pensam que as referências de Moisés e demais livros devem ser claras. Se olharmos para os discursos dos primeiros apologistas, como Pedro e Estêvão, vemos como tanto Jesus como os fariseus admitiam como provas evidentes o que nós poderíamos chamar de indícios insuficientes. Tal o caso de Deus disse: sois deuses, do salmo 82, 6, que Jesus aplica ao seu caso em Jo 10, 34. Segundo estimativas dos estudiosos, nos evangelhos existem não menos de 300 referências ou citações do AT. É a mesma justificação que o caminhante deu aos discípulos de Emaús.

JESUS MESTRE: Então abriu a mente deles para entenderem as Escrituras (45). Tunc aperuit illis sensum ut intellegerent scripturas. A presença de Jesus não vinha unicamente confirmar na fé, mas também demonstrar os planos divinos abrindo os olhos dos discípulos para a realidade verdadeira dos mistérios que se encerravam na morte e ressurreição de Jesus. Desses novos ensinamentos saíram os discípulos, propondo uma visão do alto dos acontecimentos em Jerusalém nos últimos dias. Pedro argumenta com os salmos 16 e 110. E é esquisito ver como eles, que não eram doutos nas Escrituras, agora as usam com extrema maestria para provar que Deus constituiu Senhor e Cristo a esse Jesus que tinham crucificado (At 2, 36).

A BASE: E disse a eles que assim estava escrito e assim convinha que o Cristo padecesse e ressuscitasse dos mortos no terceiro dia (46). Et dixit eis quoniam sic scriptum est et sic oportebat Christum pati et resurgere a mortuis die tertia. São três afirmações que estavam contidas nas profecias do AT: Padecer como servo, segundo lemos em Isaías, como vítima do castigo, ferido por Deus e humilhado (Is 53, 4), após a detenção e julgamento, cortado da terra dos vivos (Is 53, 8). Deram-lhe sepultura ente os ricos (Is 53, 8). Após o trabalho fatigante de sua alma ele verá a luz e se fartará (Is 53, 11). Sobre a ressurreição, não abandonarás minha vida no sheol, nem deixarás que teu fiel veja a corrupção (Sl 16, 8). Os judeus afirmavam que a corrupção e, portanto, a alma [nefesh] abandonava o corpo três dias após a morte. Logo esta afirmação de não deixar ver a corrupção equivalia a estar vivo aos três dias. Este versículo constitui a base do evangelho. Isso é o que eles deviam ensinar como testemunhas do novo século ou Eón.

O KERIGMA: E serem anunciados em seu nome a conversão e o perdão dos pecados a todas as gentes a começar por Jerusalém (47). Et praedicari in nomine eius paenitentiam et remissionem peccatorum in omnes gentes incipientibus ab Hierosolyma. De fato, no primeiro discurso de Pedro, este retoma o assunto da conversão e do perdão dizendo: Arrependei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados (At 2, 38). Teremos que voltar a esse discurso de Jesus e a seu eco em Pedro para encontrar a verdadeira essência do cristianismo. Este exige uma parte do homem que é a sua intenção de mudar de conduta, aceitando como norma, não a sua, mas a divina; e por outra parte oferece uma ampla dádiva divina: o perdão absoluto, sem mais condições, como é oferecido no batismo.

TESTEMUNHAS: Portanto vós sois testemunhas destas coisas (48). Vos autem estis testes horum.  Esta é a razão das aparições de Jesus: o testemunho que deviam dar seus discípulos de que ele estava vivo e, portanto, ressuscitado. Com esta última afirmação de Jesus vemos a realidade da escolha, da vida em comum e da maneira de proclamar Jesus ao mundo inteiro: Os ministros do kerigma são testemunhas da Ressurreição. Por isso, os modernos teólogos que põem em dúvida aspectos da mesma como a reduzindo a uma vista interior sem materialização, ou ao sepulcro vazio, são o oposto dos apóstolos, diretos seguidores de Jesus.

PISTAS: 1) É de se supor que este aparecimento é um compêndio dos dois que João narra em diferentes domingos consecutivos no capítulo 20. As diferenças que temos mostrado indicam que as fontes foram diferentes. As convergências no dia e hora, na súbita entrada, na amostra das chagas, e na paz como saudação expressa, indicam que o fato foi visto por várias testemunhas e que os relatos variam por serem várias as fontes e diferentes os objetivos, ressaltando um ou outro detalhe segundo impressões e intenções pessoais.

2) O relato, com as palavras de surpresa e de temor, indica que uma coisa é acreditar em relatos de outros e outra muito diferente ver os fenômenos que não são nem frequentes, nem naturais. Em todos os relatos de visões sobrenaturais do mundo moderno, como Fátima, vemos que o temor acompanha sempre o sobressalto da aparição.

3) O convite a tocar e não só ver indica que o corpo presente diante deles tinha aspectos físicos ou que podiam se conformar às leis físicas, à vontade do ressuscitado. As feridas muito mais do que o rosto eram as marcas que determinavam, em definitivo, a realidade da pessoa na frente deles. Se faltava alguma prova para se certificar de que aquilo era real, comeu uma porção de peixe. Parece que o evangelista queria refutar toda dúvida possível. Mesmo assim existem muitos como Tomé, aqui evocado, não como apóstolo, mas como incrédulo. Por isso, podemos afirmar que existem muitos, como Tomé, que não acreditam porque não têm visto.

4) Diante do escândalo da cruz que na época era muito maior do que nos dias de hoje, além da sua presença era necessário que Ele provasse ser tudo conforme às Escrituras. Os caminhos de Deus consistem,  como afirmava Paulo, em mostrar sua sabedoria e fortaleza no que é loucura e fraqueza para os homens (1 Cor 1, 25). Daí que a maior esperança seja a dos mais necessitados: Bemaventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus (Lc 6, 20).

5) É inacreditável ver como os modernos críticos falam da pedra arrancada e do sepulcro vazio como fatos  históricos e os aceitam como tais; mas quando se trata das aparições dizem que não são fatos históricos e os rejeitam, embora fossem escritos pela mesma pena e o mesmo escritor. São fatos experimentais que cada um pode sentir, segundo sua própria mentalidade. Mas tocar, comer, entram em uma experiência íntima ou podem ser admitidos como históricos?

 

Facebook
Twitter
LinkedIn

Biblioteca Presbíteros