Comentário Exegético – X Domingo do Tempo Comum (Ano C)

X DOMINGO DO TEMPO COMUM (Lc 7, 11-17)

RESSURREIÇÃO DO FILHO DA VIÚVA DE NAIM

(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Nos livros sagrados temos várias ressurreições de mortos. Entre eles está a do filho da viúva de Sarepta [lugar de fundição] cidade situada na Fenícia entre Tiro e Sidônia, onde foi enviado Elias, que recebeu comida do óleo e farinha da dona da casa para ele, a mulher e seu filho. Este morreu e Elias o ressuscitou após se estender sobre o menino três vezes. (1 Rs 17 +). Uma outra ressurreição é a narrada em 2 Rs 4, 18-36 do filho da Sunamita [de sunem, lugar de repouso] que foi ressuscitado pelo profeta Eliseu. A terceira ressurreição foi a de um morto ao tocar os ossos de Eliseu no seu sepulcro [uma clara prova de que as relíquias são produto válido de intercessão segundo a Bíblia] (2Rs 13, 20-21). No NT Jesus sozinho fez três ressurreições: a filha de Jairo (Mc 5, 35-42), este do filho da viúva de Naim  e finalmente Lázaro, o mais espetacular de todos em que não serve a catalepsia [rigidez muscular com aparências de morte], pois eram já 4 dias após seu óbito (Jo 11,43-44). A diferença entre os milagres dos dois profetas e  Jesus é que eles ressuscitaram os meninos após profunda oração e em nome de Javé.  Jesus os devolve à vida com sua palavra e com seu mandato: Menina, eu te digo (Mc 5, 41); jovem, eu te ordeno (Lc 7, 14) e Lázaro, vem para fora (Jo 11, 43). Ele substitui o poder de Javé e, por isso, a si mesmo se define como Ressurreição e Vida. Para sermos honestos, temos também, dentro dos escritos bíblicos do NT, duas outras restaurações de vida: a de Tabita [gazela] que Pedro reavivou, sem testemunhas, como foram os dois casos dos antigos profetas, após uma profunda oração (At 9, 16-42) e a de Éutico [afortunado] por Paulo em At 20, 9-12. No evangelho de hoje, partimos de uma cura in extremis, como era a do servo do centurião (Lc 7, 1-10) a uma ressurreição, em que é a vida e não uma saúde a que é restituída. Logicamente o poder de Jesus é afiançado, como único, em todas as facetas da existência humana. Ele é quem pode dar vida e não unicamente melhorá-la, mas arrebatar a vida da morte. Senhor absoluto, pois, com poder unicamente devido à divindade. Uma interpretação simbólica, sem referências históricas que a avaliem, olha em Naim o Israel do tempo de Jesus, como sociedade incapaz de dar a vida. A viúva simboliza o Israel infiel que ficou sem seu Deus, o esposo. O filho único era a esperança de Israel que estava morta e a cidade amurada era como o seio materno, seco, sem vida. O que resta são os ritos próprios de uma religião de mortos. No extremo oposto, Jesus, de fora da cidade, se apresenta como outrora Deus se apresentou a seu povo: para dar o alento vital a um povo escravo, em situação precária, sem esperança.

JESUS SE APROXIMA DE NAIM: Sucedeu, pois, no dia seguinte (que) encaminhava-se a uma cidade chamada Naim e acompanhavam-no muitos (de) seus discípulos e multidão numerosa (11). Et factum est deinceps ibat in civitatem quae vocatur Naim et ibant cum illo discipuli eius et turba copiosa. KAI EGENETO [e sucedeu] : é uma frase literária para unir o parágrafo anterior com o seguinte, sem implicar tempo ou circunstâncias. NO DIA SEGUINTE: Jesus acaba de curar em Cafarnaum o servo do centurião. Segundo o programa de Lucas, Jesus está a caminho de Jerusalém, daí o encaminhava-se do texto. Temos traduzido no dia seguinte, palavras que outros traduzem por em seguida. NAIM era uma aldeia a 7 Km ao sul de Nazaré e 40 de Cafarnaum; pareceria que Jesus tomava o caminho de Jerusalém, mas logo o encontramos de novo em Cafarnaum e às margens do lago de Genesaret, para de novo e definitivamente tomar o caminho de Jerusalém no final do capítulo 9.  Ao que parece, este parêntese entre Lc 7, 17 e 9, 51 interrompe a ida única e final, narrada pelo evangelista e que constitui a coluna vertebral de seu evangelho. A companhia dos numerosos discípulos e grande multidão compreende-se melhor se a viagem tinha como destino Jerusalém e como objetivo a festa da Páscoa.

O CORTEJO: Como, pois, se aproximou da porta da cidade, eis que era levado, morto, um filho único de sua mãe e ela era viúva e grande multidão da cidade com ela (12). PORTA DA CIDADE: Não significa que Naim fosse uma cidade fortificada, mas que estava perto das primeiras casas da mesma no caminho que a ela conduzia, como vemos também no caso de Elias ao se aproximar de Sarepta (1 Rs 17, 10). FILHO ÚNICO: O monogenés [nascido único] é uma predileção de Lucas como era a filha de Jairo (8, 42) e o filho epiléptico do Tabor (9,17). À parte da tragédia de ser um filho único, está o fato de ela ser viúva. A morte do filho significava a perda do único meio de sustento da mulher. Numa sociedade altamente machista uma viúva era como um órfão, dos quais o Deus de Israel tinha um cuidado especial: Pai dos órfãos, justiceiro das viúvas, tal é Deus em sua morada santa, cantavam os israelitas no salmo 68, 6. O fato é que Jesus aqui toma o lugar de Deus, adiantando-se ao pedido, e sem exigir a fé do interessado para obrar o milagre. È o mesmo Deus, pai do órfão e justiceiro das viúvas do AT. ERA LEVADO: Segundo a MIshná em Kettubot [contratos matrimoniais] 4,4 diz: Até os mais pobres em Israel devem alugar não menos de duas flautas e uma carpideira. Prévio ao enterro, e, como recordação de costumes antigos, nos quais os familiares rasgavam suas vestes, executando a keriá [ruptura], um corte dado na roupa exterior dos familiares mais próximos. Depois, vem o lavado ritual [tohorá] e é colocado o morto numa mortalha [tajrijin] de tela branca e por vezes se pronuncia um discurso recordatório [hesped]. No cortejo para a tumba o séquito era formado pelos familiares mais próximos, amigos e conhecidos, acompanhados pelos flautistas e carpideiras, estas derivadas do verbo carpir que significa também lamentar-se, murmurar, queixar-se chorar, além de capinar. A carpideira era uma mulher profissional que, mediante pagamento previamente combinado, chorava um defunto alheio, sem nenhum sentimento, grau de parentesco, ou amizade com o defunto. Após fechada a tumba, um familiar próximo, varão, pronunciava o Kadish [consagração]. O Kadish é uma prece na qual eram reiteradas a Santidade de Deus e seu Reino. Era recitado em aramaico com a exceção do último verso, [Ele que produz a paz em seus lugares sagrados (as alturas), traga a paz sobre vós e sobre Israel, e digam Amém] antes de importantes preces nos serviços religiosos e ao terminar uma Parashá [parágrafo ou trecho lido por um leitor] da Torah ou um Massehet [tratado] do Talmud. Porém o Kadish Yatom [kadish dos órfãos] era  especialmente recitado em memória de entes queridos, como uma maneira de demonstração de eterno amor, e rogo necessário para elevar as almas dos defuntos. Por isso, a pessoa, que perdeu um de seus pais, não deverá perder sequer um só Kadish em memória do falecido. A MORTALHA: Temos visto nos dias de hoje como os corpos dos mortos, no Oriente, eram envoltos num lençol de linho, atado em três lugares [pescoço, cintura e pés] e posto sobre uma maca, portada nos ombros de 4 carregadores. A este esquife seguia ou precedia a multidão, que em lugares pequenos era praticamente toda a população do lugar.

A COMPAIXÃO: E tendo-a visto o Senhor se compadeceu dela e disse-lhe: não chores (13). Quam cum vidisset Dominus misericordia motus super ea dixit illi noli flere. TENDO-A VISTO: as viúvas trajavam-se de modo especial, apropriado à sua condição social (Gn 38, 14-19), despojavam-se de seus ornamentos, vestiam-se de saco, tendo um manto especial como viúvas, não se penteavam, nem ungiam o rosto (Jt 10, 3-4 e 16, 8). O SENHOR: É a primeira vez que Lucas usa o título que substituía o nome de Jesus e que praticamente só foi concedido a ele após a ressurreição, quando Tomé o usou como substituto de Javé: meu Senhor e meu Deus (Jo 20, 28). A COMPAIXÃO: Tudo nasce de um sentimento espontâneo do Senhor como homem, mas senhor da vida (At 3, 15). Não é pedido, não exige a fé, é o Senhor que tem compaixão dos órfãos e é o que faz justiça às viúvas. NÃO CHORES: O presente do imperativo indica que deve parar de chorar porque não mais vai existir motivo para esse lamento e dor. É uma palavra de consolação, que prepara uma intervenção, que evitará a causa do pranto.

O MILAGRE: Então tendo-se adiantado, tocou o esquife. Os portadores, pois, pararam e disse: Jovem a ti digo: levanta-te (14). E ergueu-se o morto e começou a falar e (Jesus) o entregou à sua mãe (15). Et accessit et tetigit loculum hii autem qui portabant steterunt et ait adulescens tibi dico surge. Et resedit qui erat mortuus et coepit loqui et dedit illum matri suae. ESQUIFE: a palavra grega soros significa propriamente a urna em que se depositavam os restos de uma pessoa defunta, frequentemente de pedra e na qual eram depositadas as cinzas ou servia de ossário para os ossos. Também podia ser usada no sentido de féretro ou esquife, embora para esta palavra o apropriado era klínë, originalmente leito, ou cama. Não era um féretro ou caixão no sentido atual, mas uma maca sobre a qual estava o morto envolto num lençol, que não podia ser de lã, porque esta era produto animal e implicava, portanto certa impureza legal. O uso do lençol é claro no enterro do Senhor Jesus, como declaram todos os 4 evangelistas. Lençol que foi comprado para a ocasião por José de Arimatéia (Lc 23, 53). Jesus tocou o esquife: era um ato em que se arriscava a ser contaminado de impureza, cujo degrau era máximo quando se tratava de mortos. Daí que os que portavam o cadáver pararam. Sem dúvida que o ato de Jesus era insólito e arriscado. JOVEM: Neaniskos, derivado de neós [novo] era o adolescente ou jovem após a infância, com a idade entre os 14 e 20 anos. LEVANTA-TE: A ordem de Jesus é imperiosa e contundente. O verbo é imperativo passivo, que podemos traduzir por impessoal ou reflexivo. Jesus era senhor dos mortos e estes lhe obedecem assim como as forças da natureza. Quem é este a quem os ventos e o mar obedecem? (Mt 8, 27).  O morto ergueu-se ou incorporou-se. E começou a falar. O alento da vida se expressa de novo por meio da fala. O ENTREGOU: Provavelmente indica que Jesus tomou o jovem pela mão e o levou até a mãe que não podia acreditar o que seus olhos estavam vendo. No ato há uma reminiscência da atitude de Elias quando, ressuscitado o filho, desceu até o andar térreo para entregá-lo à sua mãe viúva. Além de  ser dono dos mortos, Jesus atua como uma cópia de Elias, o antigo profeta, restaurador do verdadeiro culto divino a Javé entre os israelitas. Por isso, a exclamação dos presentes: Um grande profeta há surgido! Deus visitou seu povo!

A ADMIRAÇÃO: Apoderou-se, pois, (o) temor de todos e davam glória a(o) Deus dizendo: porque um grande profeta tem surgido entre nós e porque (o) Deus visitou o seu povo (16). Accepit autem omnes timor et magnificabant Deum dicentes quia propheta magnus surrexit in nobis et quia Deus visitavit plebem suam. O TEMOR: Lucas emprega a palavra temor [fobos] para descrever a reação do povo diante do milagre ou intervenção divina sobrenatural. Algumas vezes se usa o verbo Thaumazo [admirar]. Mas quando o fato é espetacular, usa-se fobos como termo apropriado do estupor suscitado pelo fato extraordinário. É mais do que admiração: é ficar perturbado diante do extraordinário, como vemos nos relatos das aparições nos tempos modernos, fato que é corroborado pela aparição do anjo aos pastores (Lc 2, 9) e em 5, 26 quando da cura do paralítico que foi levado de maca diante do Senhor. O PROFETA: Sem dúvida que o povo pensou no fato de Elias e o filho da viúva de Sarepta quando afirmava que um grande profeta tem surgido entre nós. Outros afirmam que esse profeta era o esperado antes do Messias junto com o Sumo Sacerdote que a tradição da época esperava no seu tempo. De todos os modos, aquele povo que tinha passado dos profetas aos sábios, agora podia afirmar que Deus tinha visitado Israel. Efetivamente, com toda razão, o povo atribui o milagre ao próprio Deus, pois este é o único a dar vida e ressuscitar um morto.

A FAMA: E saiu esta voz sobre Ele por toda a Judéia e por toda a região vizinha (17). Et exiit hic sermo in universam Iudaeam de eo et omnem circa regionem. EXELTHEN: Aoristo de exerchomai que significa sair, partir e que, neste caso, deveríamos traduzir por divulgar-se ou expandir-se. VOZ: É o logos, que, como primária acepção, deve ser traduzido por palavra e que aqui seria melhor traduzir por voz, no sentido de vox populi ou fama. A JUDÉIA: Segundo a maneira de pensar dos greco-romanos, Judéia compreendia a província que estava sob o governo direto do procurador, junto com a Galiléia, que era domínio de Antipas. A região vizinha era a Fenícia e as terras sob o domínio dos nabateus, na Síria e no leste e sul da atual Palestina.

PISTAS: 1) Num mundo como o atual, em que a ausência do Deus criador, entrega ao homem o direito de sua vida e até a faculdade sobre outras vidas sob seu domínio, como no caso dos fetos maternos, é bom refletir sobre este milagre de Jesus. A vida depende de quem a pode dar, não de quem a quer tirar. Destruir é fácil; porém isso não implica direito, mas força; justiça, mas violência. O verdadeiro poder tem como base a construção e o bem, a saúde e a cura. O médico cura, o criminoso mata: aí está a diferença.

2) Jamais Jesus destruiu um inimigo ou ameaçou um rival: Quem soube recriminar discípulos que queriam botar fogo sobre os que não queriam hospedá-los (Lc 9, 54), chorou sobre Jerusalém, prevendo a destruição (Lc 19, 41) e advertiu as mulheres que o compadeciam da sina fatal de seus filhos (Lc 23, 28), sempre usou seu poder e sua autoridade para fazer o bem (At 10, 38). Usou sua autoridade moral para pedir perdão para os inimigos e fazer o bem para os perseguidores (Lc 6, 27). Deriva-se desta conduta uma Teologia que tem como base a revolução e a luta pela justiça, que considera inimigos e opressores os mais favorecidos e oprimidos e com direito à retaliação os mais desprotegidos?

3) No episódio de hoje, vemos como Jesus atua sem ser pedido, unicamente pela sua compaixão, como ser humano. Ter piedade dos que sofrem é um exercício aprovado pela atuação de Jesus até tal ponto que obra um milagre com poderes fora do comum. Quem pode afirmar, pois, que Deus se contradiz a si mesmo ao violar leis naturais com um milagre? E há maior transgressão das mesmas que voltar da morte para a vida? A cura é possível, a morte é irreversível.

4) Dirão muitos que foi catalepsia e não morte. Será que depois de 20 séculos podemos afirmar rotundamente que a morte do jovem foi só aparente? Será que uma simples voz de mando pode reavivar um cataléptico tão subitamente?  Mas vejamos o exemplo do rabi milagroso.

Facebook
Twitter
LinkedIn

Biblioteca Presbíteros