Comentário Exegético – XXV Domingo do Tempo Comum – Ano B

EPÍSTOLA (TIAGO 3, 16-4, 3)

(Pe. Ignácio, dos Padres escolápios)

      INTRODUÇÃO: Tanto para a convivência fraterna, dentro da comunidade cristã, como para a relação desta com o mundo externo, devemos optar entre dois estilos: rivalidade invejosa e litigante, ou a paz que gera justiça; ou seja, entre ambição de poder ou diaconia fraterna. Santiago assinala a origem das discórdias comunitárias: a ganância e a ambição, que nascem do egoísmo e da satisfação das paixões próprias. A Sabedoria verdadeira, que depende da infusão da ciência divina, impele o homem para a paz e a concórdia. A sabedoria humana nasce das paixões do homem caído e contribui à desordem que hoje impera no mundo. Qual deve ser a nossa escolha?

      ORIGEM  DOS CONFLITOS: Onde, pois, inveja [zelos<2205>=zelus] e contenda [erzitheia<2052> = contentio], lá confusão e toda obra iníqua (16). Ubi enim zelus et contentio ibi inconstantia et omne opus pravum. INVEJA: Definiríamos zelos<2205> como uma rivalidade invejosa e ciumenta. A CONTENDA: Epitheia<2052> é o desejo de ocupar os primeiros lugares de promoção e consequentemente de luta inglória para tal fim, como vemos em Fp 2, 3. Em 1 Cor 3, 3 temos quase os mesmos termos: inveja entre os fiéis. Que acabam em contenda: Porquanto, havendo entre vós ciúmes e contendas, não é assim que sois carnais e andais segundo o homem? CONFUSÃO: Akatastasia <181>, cujo significado é desordem, distúrbio, confusão. No evangelho de Lucas temos o único lugar em que aparece com a tradução de revoluções: Quando ouvirdes falar de guerras e revoluções, não vos assusteis; pois é necessário que primeiro aconteçam estas coisas, mas o fim não será logo. OBRA INÍQUA:  Faulos<5337>com o significado de fácil, ordinário, vil, mesquinho e, do ponto de vista moral, mau, baixo, iníquo. Com o significado de mal, como substantivo, temos Jo 3, 20: Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras.

      A SABEDORIA: Porém, a sabedoria [sofia<467>=sapientia] do alto [anöthen<509>=desursum] principalmente é pura [agnë<53>=pudica], depois pacífica [eirënikës<1933>=pacifica], indulgente [ epieikës<1933>=modesta] tratável [eupeithës <2138> = suadibilis], cheia [mestë <3324> = plena] de misericórdia [eleous <1656>=misericórdia] e de bons frutos e imparcial [adiakritos<87>=non judicans] e sem hipocrisia [anupokritos<505>=sine simulatione](17). Quae autem sursum est sapientia primum quidem pudica est deinde pacifica modesta suadibilis plena misericordia et fructibus bonis non iudicans sine simulatione. O apóstolo Tiago aqui revela uma série de qualidades inerentes à sabedoria divina que é participada pelos homens santos. SABEDORIA: Sofia<4678> No seu significado profano é ciência prática das coisas necessárias para a vida, bom senso, juízo, siso, critério, sensatez. Especificamente, em se tratando de coisas divinas seria o conhecimento do Deus único e de seus desígnios na economia humana. Aparece pela primeira vez em Mt 11, 19: Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores! Mas a sabedoria é justificada por suas obras. Jesus queria dizer que os juízos dos homens estavam fora da verdadeira ciência de Deus e que suas obras (de Jesus) tão extraordinárias justificavam sua verdade de ser o representante de Deus. Esse era o saber no qual cresciam tanto João como Jesus desde  a mais tenra infância (Lc 2, 40 e 2, 52). DO ALTO: Anothen<509> com o significado de um lugar superior, especificamente do céu ou de Deus. Também pode ter o significado de, desde o início ou de novo. Mas aqui, logicamente significa da parte de Deus. PURA: Agnë<53> que excita reverência, venerável, sagrado. Também puro, casto, modesto, imaculado, sem mancha. Em 2 Cor 11, 2: Vos desposei como uma virgem pura a Cristo. O latim pudicus significa recatado, honesto, casto, virtuoso. PACÍFICA: Eirënikës <1516> pacífico, amante da paz. INDULGENTE: Epieikës<1933> apropriado, conveniente, justo, razoável, moderado. TRATÁVEL: Eupeithës <2138> dócil ou fiável e persuasivo; o latim traduz como dócil. CHEIA: Mestos <3324> com o significado de  cheio, transbordante ou farto, como vemos em Mt 23, 28: pareceis justos aos homens, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e iniquidade. Traduziremos, pois, a sabedoria esta cheia de misericórdia e de bons frutos. MISERIÓRDIA: Eleos <1656> é a virtude pela qual temos compaixão dos necessitados de modo a socorrê-los. IMPARCIAL: Adiakritos <87> sem ambiguidade, sem dúvidas. É a única vez que a palavra é encontrada no NT. SEM HIPOCRISIA: Anupokritos<505> sem fingimento, sem hipocrisia, sem disfarce,  sincero. Como vemos a sabedoria, procede de Deus e tem como atributos o amor à verdade e a compaixão para com os homens. O Papa atual dirá, certamente inspirado, a frase de Caritas in Veritate: O amor manifestado na verdade. Ou o amor que unicamente é sincero tem sua base na verdade.

      A CONDUTA: Pois o fruto da boa conduta [dikaiosuvës<1343>=iustitiae] é semeado em paz aos que promovem a paz (18). Fructus autem iustitiae in pace seminatur facientibus Deus pacem. BOA CONDUTA: Dikaiosunë <1343> é integridade de conduta, virtude, retidão no pensar, sentir e obrar. Paulo, assim como usou pistis (fidelidade) no sentido de fé, usou dikaiosunë no sentido de ser purificado e aceito por Deus, como um homem sobre o qual o sangue de Cristo limpou as impurezas do pecado. Assim, em Rm 3, 22: a justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os crentes, sem distinção alguma. A PAZ: Eirënë <1515> é a palavra paz em grego clássico, significando ausência de conflitos, mas que, na literatura bíblica, tem um sentido muito mais amplo. Se em termos clássicos denota ausência de conflitos, a paz, segundo a promessa de Deus, era o perdão e, com ele, conseguida a amizade divina, a obtenção dos bens materiais e espirituais correspondentes às promessas feitas por Deus a seu povo. OS PACÍFICOS: assim traduzem os evangelistas os que, em termos gregos literalmente, devem ser traduzidos por: os que constroem a paz, e que temos traduzido por promovedores ou trabalhadores em favor da paz. Essa paz que os discípulos deviam oferecer a seus hóspedes que bem os recebessem segundo Mt 19, 13: Se, com efeito, a casa for digna, venha sobre ela a vossa paz; se, porém, não o for, torne para vós outros a vossa paz.

      ORIGEM DAS CONTENDAS: De onde lutas  [polemoi<4171>=bella] e contendas [machai <3163=lites] entre vós? Não disso: dos vossos prazeres [ëdonôn<2237>=concupiscentiis], os que labutam [strateoumenôn<4754>=militant] em vossos membros [melesin<3196>=membris] (4, 1). Unde bella et lites in vobis nonne hinc ex concupiscentiis vestris quae militant in membris vestris. Falar de guerras e rumores de guerras. CONTENDAS: O grego Machê <3163> significa batalha, contenda, combate e, em termos de relações humanas, disputas, rixas, brigas. DISSO: Enteuthen<1782> daí, daqui, ou por outro lado. Mt 17, 2: Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele passará. Ou Jo 19, 18: Crucificaram-no e com ele outros dois, um de cada lado. PRAZERES: Ëdonë grega significa prazer ou desejo libidinoso. Lemos em Lc 8, 14: A semente que caiu entre espinhos são os que ouviram e, no decorrer dos dias, foram sufocados com os cuidados, riquezas e deleites da vida. LABUTAM: Strateuomai<4754> guerrear ou fazer uma expedição, uma razzia guerreira, lutar. O melhor exemplo é 1 Cor 9, 7: Quem jamais vai à guerra, à sua própria custa? MEMBROS: Melos <3196> um membro, especialmente do corpo humano. É clássica a citação paulina em Romanos 6, 13: Nem ofereçais cada um os membros do seu corpo ao pecado, como instrumentos de iniquidade; mas oferecei-vos a Deus, como ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros, a Deus, como instrumentos de justiça.  E de modo especial em Rm 7, 23: Mas vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros. Como Paulo, Tiago opõe a natureza [o psiquikos paulino] à alma dirigida pelos impulsos do Espírito [o pneumatikos]. Aquela entra na sabedoria humana com todas as consequências de divisão e contendas e esta, dominada e dirigida pela sabedoria que provém de Deus, é pacífica e misericordiosa. É questão de ver em nossas consciências se realmente pertencemos a uma ou a outra classe de humanidade.

       OS FRUTOS DA AMBIÇÃO: Ambicionais [epithumeite<1937>=concupiscitis] e não temeis, matais, invejais [zëloute<2206>=zelatis] e não podeis obter [epituchein<2013>=adipisci]. Pelejais [machesthe <3164> =litigais] e guerreais [polemeite <4170>=belligeratis]. Porém não tendes, pois o não pedis [aitesthai <5733>=postulatis] (2). Concupiscitis et non habetis occiditis et zelatis et non potestis adipisci litigatis et belligeratis non habetis propter quod non postulatis. AMBICONAIS: Epithumeö<1937>: literalmente, despejar-se sobre uma coisa: daí cobiçar, pretender loucamente. INVEJAIS: Zëloö <2206>: invejar, cobiçar, presenciar com desgosto o bem alheio. Um exemplo, At 7, 9: Os patriarcas, invejosos de José, venderam-no para o Egito. OBTER: Epitugchanö <2013>: obter, alcançar, conseguir, lograr, adquirir. Das cinco vezes que a palavra sai, temos este exemplo em Romanos 11, 7  Que diremos, pois? O que Israel busca, isso não conseguiu; mas a eleição o alcançou. PELEJAIS: do verbo Machomai<3164>, lutar, combater, pelejar, e em sentido não material, disputar, brigar, como em Jo 6, 52: Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este dar-nos a comer a sua própria carne? CONTENDEIS: Polemeö <4170> fazer a guerra, lutar como vemos em Ap 2, 16: Contra eles pelejarei com a espada da minha boca. PEDIS: Aiteö<154> pedir, implorar, suplicar. Sai 71 vezes e como exemplo temos Mt 5, 42: Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes. Neste versículo, Tiago, ao mesmo tempo em que critica condutas erradas, dá a razão pela qual os pedidos são inúteis: são pedidos de coisas iníquas como ambição, cobiça, disputas, triunfos sobre inimigos reais ou imaginários. É impossível que Deus conceda semelhantes rogos que estão fora de seus planos de amor e concórdia, como temos visto que era sua sabedoria no início do texto.

     POR QUE NÂO SOMOS OUVIDOS: Pedis e não recebeis porque pedis de modo errado com o fim de esbanjar [dapanësëte<1159>=insumatis] nos vossos desejos [ëdonais<2237>=concupiscentiis] (3). Petitis et non accipitis eo quod male petatis ut in concupiscentiis vestris insumatis. ESBANJAR: Dapanaö<1159> gastar, desperdiçar, esbanjar. CONCUPISCÊNCIA: Ëdonë <2237> prazer, lascívia, concupiscência. A petição, segundo o Senhor, deve ser feita em conformidade com os planos de Deus. Lemos em Mt 6, 8: Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus, o vosso Pai, sabe o  que tendes necessidade, antes que lho peçais. Simplesmente quer dizer que devemos pedir as coisas necessárias e não as que formam parte de nossos caprichos. Jesus, na oração do horto insistia: Meu Pai, se esta taça não pode passar sem que eu a beba, faça-se a tua vontade (Mt 26, 46). E o que nos pede o Senhor a todos nós como verdadeiros discípulos que pedem como orar é: Seja feita tua vontade tanto no  céu, como também na terra (Mt 6, 10).

EVANGELHO (Mc 9, 30-37)

O VERDADEIRO MESSIADO

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 

   AS DUAS PARTES:  No evangelho de hoje podemos distinguir duas partes diferentes; porém, ambas com uma base comum. A primeira é a segunda predição de Jesus sobre sua sorte definitiva em Jerusalém, cuja viagem acabava de se iniciar. A segunda é a lição sobre quem é o melhor dos seus discípulos. Na realidade, podemos unir ambas sob o conceito de que é preciso perder a vida para ganhá-la definitivamente (Mc 8, 35). Jesus dá com sua própria vida o exemplo paradigmal do que acabava de afirmar como Mestre. Jesus morre como um escravo, o servidor mais humilde,  para servir de sacrifício pelos pecados de toda a humanidade, sem distinção. Na sua morte, como aconteceu no seu nascimento, Jesus se coloca no último lugar como serviço à humanidade. Falando de sua morte, um autor dizia que Jesus morreu duas vezes: materialmente como consequência dos sofrimentos da cruz, que era uma morte lenta e a mais cruel de todas como castigo (Cícero), e espiritualmente como homem honrado, pois foi rebaixado até o último lugar: como um maldito, segundo a lei,  para os judeus (Dt 21, 23 e  Gl 3, 13), e como um proscrito e malfeitor para os greco-romanos (Lc 22, 37). De ambas as mortes Ele se livrou por meio de duas ressurreições: a física e a moral; de modo que a cruz que era símbolo de maldição e estupidez se tornou símbolo da árvore da vida para todo crente que olha Jesus, reinando desde a mesma como Senhor.

      A SEGUNDA PREDIÇÃO: E tendo partido dali passavam por meio da Galileia e não queria que alguém o conhecesse (30). Porque ensinava os seus discípulos e lhes dizia: O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens e o matarão; mas três dias depois da morte, ressuscitará (31). Et inde profecti praetergrediebantur Galilaeam nec volebat quemquam scire. Docebat autem discipulos suos et dicebat illis quoniam Filius hominis tradetur in manus hominum et occident eum et occisus tertia die resurget. DALI: Era o monte Tabor, que, segundo a tradição, está no sul da Galileia perto da Samaria, dominando o vale de Jezreel, sobre o qual se eleva com 400 m, solitário. Jesus está a caminho de Cafarnaum. O ensino agora era real e sem parábolas. Mesmo assim, os discípulos, os que sempre o acompanhavam, cujo número não estava limitado aos doze, não entendiam a nova linguagem do mestre e Jesus repetiu até três vezes a nova doutrina. Era essencial que entendessem sua missão em termos reais e verdadeiros; pois, do contrário, era inútil seu ensinamento, por não compreenderem a realidade de sua verdadeira missão como Messias, o Ungido, o Cristo de Deus. Em Jerusalém, tanto ele como os doze esperam o triunfo, a exaltação como Messias. Os discípulos tinham recebido duas lições sobre o tema: uma imediata à resposta de Pedro sobre o messiado de Jesus (Mc 8,31) e a outra no monte da transfiguração, quando, entre duas testemunhas proféticas, se falava de sua morte (Lc 9, 31), se bem que nesta última, só três deles estavam presentes. SERÁ ENTREGUE: Comparando as três predições (Mc 8, 31; 9, 31 e 10, 33) vemos que esta segunda é a menos detalhada. No lugar dos membros do Sinédrio ou Grande Conselho (anciões, chefes sacerdotais e escribas de 8, 31; ou chefes sacerdotais e escribas para ser condenado à morte de 10, 33), temos unicamente que será entregue nas mãos dos homens. FILHO DO HOMEM: Há uma clara distinção entre o Filho do Homem, representante do verdadeiro homem, por Deus querido e criado e os outros homens que seguem critérios contrários ao da divindade. Aquele é rejeitado pelas autoridades religiosas e políticas de Israel e entregue aos homens que eram considerados inimigos de Deus, os gentios de 10, 33. Tanto os judeus que o condenam, como os gentios que o matam, eram os homens que agem fora dos mandatos divinos, mas não fora dos seus desígnios, porque a morte de Jesus era um fato necessário (o dei grego, que pode ser traduzido por estava escrito, decretado). RESSUSCITARÁ: O triunfo final só se alcança com a derrota prévia; a vida eterna só se consegue com a morte da temporal. É a grande lição não só proveniente de Jesus como exemplo, mas de todos os que desejam alguma coisa permanente  e duradoura. É o que o Mestre afirma continuamente: quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a sua vida por minha causa, vai salvá-la (Mt 16, 25).

     IGNORÂNCIA DOS DISCÍPULOS: Porém, eles não entendiam [ëgnousin<50>=ignorabant] a mensagem [rëma<4487>=verbum] e temiam interrogá-lo (32). At illi ignorabant verbum et timebant eum interrogare. O verbo Agnoeö <50> embora admita a acepção de ignorar, é melhor traduzido por não entender. A palavra Rëma<4487> distingue-se do logos comum, porque esta é uma palavra que não leva incluída uma profecia ou mensagem. Já rëma é a palavra de Deus, aquela que inclui uma  mensagem divina, uma proposta de Deus. Não de pão unicamente vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus (Mt 4, 4). O TEMOR: É o mesmo temor que se apoderou dos discípulos quando viram Jesus comandar o mar e o vento (Mc 4, 41).

     EM CASA: E vieram  em Cafarnaum e chegados em casa, perguntou-lhes: Que, no caminho, entre vós discutíeis?(33). Eles, porém, calaram entre eles; porque discutiram no caminho quem seria (o) maior (34). Et venerunt Capharnaum qui cum domi esset interrogabat eos quid in via tractabatis. At illi tacebant siquidem inter se in via disputaverant quis esset illorum maior. O SILÊNCIO: O evangelista, que descreve a ruindade dos discípulos, para poder apresentar a grande lição de Jesus, diz que a vergonha tomou conta dos mesmos porque não era uma razão suficientemente honrosa a causa de sua decisão. E, como verdadeiros culpados, ao serem interrogados pelo juiz de todos os homens, calaram. Não existiam razões nem desculpas.

     A LIÇÃO: Então, tendo-se assentado, chamou os doze e diz-lhes: Se alguém quiser ser primeiro será último de todos e diácono de todos(35). Et residens vocavit duodecim et ait illis si quis vult primus esse erit omnium novissimus et omnium minister. SENTANDO-SE chamou os doze. Era a clássica postura dos mestre de Israel. Assentavam-se sobre um coxim ou almofada, enquanto os discípulos rodeavam o mestre sentados em círculo no chão cruzando as pernas. Jesus dá, pois, aqui uma lição magistral: Se alguém quer ser primeiro, será último de todos e servidor (diakonos) de todos. A tradução é o mais literal possível, pois pretende respeitar a força do original grego, dificilmente traduzida em traduções livres. Também a palavra diakonos indica um serviço voluntário bem diferente de doulos que era o escravo propriamente dito. Diaconia era principalmente o serviço da mesa.

     O PAIDION: E tomando uma criança [paidion <3813>=puerum], colocou-a de pé no meio deles e tendo-a abraçado [enagkalisamenov <1723>=complexus], lhes disse (36): Se alguém um das tais crianças receber no meu nome, a mim recebe; e quem a mim receber não a mim recebe mas a quem me enviou (37). Et accipiens puerum statuit eum in medio eorum quem cum conplexus esset ait illis Quisquis unum ex huiusmodi pueris receperit in nomine meo me recipit et quicumque me susceperit non me suscipit sed eum qui me misit. PAIDION: A palavra grega não tem um significado único e esclarecedor. Geralmente é traduzida por menino nos seus primeiros anos, um brotinho em português. Como pode ser uma criatura tão frágil e pequena, paradigma do verdadeiro discípulo de Cristo? Veremos os dois significados, maiormente admitidos pelos exegetas desta palavra: 1o) O menino que Jesus tomou em seus braços era um brotinho de dois ou três anos. 2o) Alguns modernos, ao parecer sem muita lógica,  traduzem o Paidion por criado, melhor servo. Porém para este último significado temos o Pais grego  para o masculino (ver Mt 8, 2 e Lc 7, 2) e Paidiske para o feminino (Mc 14, 66). Optamos, pois,  pelo 1o significado: um broto de poucos anos.  Marcos emprega o Paidion para a filha de Jairo em 5, 39-41. A tradução escolhida pelas bíblias portuguesas é criança e a Talita de Marcos, no mesmo contexto, com certeza a palavra original, indica que era uma adolescente: damsel como traduz a bíblia de K James, muchacha em espanhol, fanciulla em italiano, puella em latim e karasion em grego. De tudo isso deduzimos que o Paidion é um vocábulo geral que dificilmente nos dará a chave para saber de que idade era  o menino. Porém, o verbo grego seguinte enagkalisomai (tomar nos braços, o complexus latino) indica que a criança era, como dizem os italianos, um bambino, um menino de dois a três anos. Essa criancinha, totalmente dependente e impotente por si mesma, é o motivo da lição maravilhosa de Jesus: Quem recebe a uma criança semelhante a esta  é a mim que recebe. Mas Mateus (18, 1-5), o grande catequista, parece que estende a lição de Jesus, tomando como miniparábola a criancinha: Se não vos converterdes e não vos tornardes como as criancinhas, não entrareis no reino dos céus. DE QUE É PARADIGMA UMA CRIANCINHA? De todo aquele que quer entrar no reino. Para isso devemos nos tornar como criancinhas. Qual é a qualidade da mesma que nos transforma no modelo apontado por Jesus? Evidentemente Ele nos dá a solução em Mt 18, 4: Se tornar pequeno (ínfimo podemos dizer), (humiliaverit se, humilhar-se do latim), esse é o maior no reino. Paulo explicará a vida humana do Logos dizendo que se esvaziou a si mesmo da divindade… para se tornar pequeno (ínfimo) e obediente até a morte e morte de cruz (Fl 2, 7-8). Em ambos os casos, usa-se o verbo tapeinoö que significa rebaixar, se tornar insignificante e talvez o último. Nos tempos de Jesus, a criança ocupava o último lugar na escala social, praticamente sem valor, detrás dos escravos e das mulheres. Este é, pois, o ponto de comparação e não a candidez ou falta de maldade de pensamento da criança. Por isso dirá Jesus que se não recebemos o reino como um Dom, algo indevido, como um presente de Deus, como recebe o menino a vida e a comida dos pais, não podemos entrar no reino. O homem nem pode dizer que está melhor preparado, nem afirmar que ele deve ser escolhido sendo melhor que um outro. A graça divina precede, acompanha e termina a vida humana segundo seus planos inescrutáveis, porque olhou com bondade a insignificância de sua escrava, como afirma Nossa Senhora (Lc 1, 48).

      PISTAS: 1ª) Os discípulos pensavam que o Reino de Cristo, à diferença do Reino de Deus, este final e definitivo, era terrestre, como o de Davi e devia se manifestar imediatamente em Jerusalém para onde estavam se dirigindo. Porém, nos planos divinos, estava a morte de Jesus como início do seu Reino. Era a exaltação, como João denomina a crucifixão, contra a maldição vista pela lei, ou a vergonha contemplada pelos gentios. Daí que existisse entre eles a disputa de quem devia ser o preferido na escala do Reino.

      2ª) Os planos de Deus, um Deus justo, encontram a justificação do pecador no fato de que o Filho, inocente, pague um preço mais do que satisfatório para que o perdão seja mais do que generoso. O sofrimento e o sangue de quem era Filho único, paga pelo perdão de quem era inimigo e quer ser reconhecido como filho.

      3ª) O orgulho é um dos pecados mais comuns entre os homens: É  querer ser mais, ter mais, sobressair mais do que os outros. Merecemos –pensam – algo melhor do que nos tocou em sorte e atualmente possuímos. Foi o pecado do anjo rebelde. Foi a tentação da liberdade e superioridade proposta pela serpente no paraíso.

      4ª) Porém, o evangelho apresenta uma outra solução: A autêntica grandeza está em servir, porque escolhemos o último lugar e assim entregamos a vida, perdendo-a aparentemente. A grandeza está em dar, não em receber; em obedecer e não em mandar e dominar. Há algum serviço que possamos emprestar, alguma gentileza com a qual possamos ajudar o próximo, alguma contribuição que devamos dar para fazer o próximo mais feliz?

     5ª) A criancinha representa o impotente, o que não pode retribuir, o verdadeiramente necessitado. Tem sido ela -a criança- a figura de Cristo que guia nossos interesses, domina nossas preferências ou ilumina nossos passos? As palavras de hoje são dignas de serem ouvidas, merecem ser meditadas e principalmente devem ser imitadas.

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