Comentário Exegético – XXX Domingo do Tempo Comum – Ano B

EPÍSTOLA  (Hb 5, 1-6)

O SACERDÓCIO DE CRISTO

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 INTRODUÇÃO: Temos na epístola de hoje dois traços característicos do sacerdócio de Cristo: O primeiro é sua abertura e compaixão com os errantes e desgarrados que Ele mesmo afirma ao dizer que veio como médico para os enfermos (Mc 2, 17) e para as multidões cansadas e desanimadas, como ovelhas sem pastor (Mt 9, 36). Como verdadeiro homem, ele sabia das dificuldades e problemas dos ignorantes e extraviados. A sua experiência era a vida em comum com os demais homens, de modo a afirmar: A quem compararei esta geração? (Mt 9, 36). E ele a considera malvada e adúltera (Mt 12, 39).    Por outra parte, sempre teve compaixão do povo  (Mt 14, 14) de modo que a cura das doenças foi o sinal de seu Messiado dado ao Batista (Mt 11, 4). O segundo traço é que foi chamado pelo Pai, como servo para o sacrifício. Ele sempre pensa nessa hora crucial em que o Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores (Mt 26, 45), porque veio dar a vida pela liberação de todos (Mt 20, 45). Seu sacrifício foi um ato de obediência até a morte e morte de cruz (Fp 2, 8). Será a conclusão de outro teólogo dos primeiros tempos: Deus nos amou e enviou seu Filho como vítima expiatória por nossos pecados     (1 Jo 4,10).

     SUMO-SACERDOTE: Pois todo Sumo-Sacerdote, tomado dentre os homens, está constituído [kathistatai <2525> = constituitur] em favor de [uper<5228>=pro] (os) homens diante [pros <4314>=ad] de Deus, para oferecer tanto dádivas [döra<1435>=dona] como sacrifícios [thysias <2376>=sacrificia] por pecados (1). Omnis namque pontifex ex hominibus adsumptus pro hos minibus consdaituitur in his quae sunt ad Deum ut offerat dona et sacrificia pro peccatis. CONSTITUÍDO: Do verbo Kathistëmi <2525> com 22 entradas no NT, com os significados de ordenar, apontar, constituir, colocar. Um exemplo é Mt 24, 25 em que um escravo é constituído como fiel e prudente chefe para cuidar de seus colegas. Também vemos em Mt 25, 21, quando, como prêmio, o Senhor o constitui chefe sobre várias cidades ou em Lc 12, 14. Na carta que estamos comentando, aparece em 2, 7: de glória e honra o coroaste e o constituíste, sobre todas as obras de tuas mãos. OFERECER: O verbo Prosferö <4374> é usado 48 vezes no NT. Seu significado é conduzir, levar a, como em  Mt 4, 24: trouxeram-lhe então todos os doentes. Ou oferecer dádivas como em Mt 2, 11: Os magos, abrindo seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas. Propriamente, unido ao sacrifício, é Mt 5, 23: Ao trazeres ao altar a tua oferenda. As OFERENDAS, Döra <1435>. Em Mt 5, 23 Jesus fala da oferta trazida ao altar. Pão, vinho e azeite eram propriamente as oferendas comuns. A Lei exigia certas oferendas como a dos leprosos curados (Mt 8, 4), a dos primogênitos e outras que em hebraico estavam sob o nome de Korban [=presente, ou oferta], que aparece no AT (Lv 1, 3 por exemplo). E dentro das ofertas em metálico que se introduziam no Gazofiláceo [do grego gaza= tesouro e filax= guarda] como esmolas, rendas ou riquezas no templo de Jerusalém (Lc 21, 1), que Jesus observou até louvar uma pobre viúva por depositar 2 leptons [=ligeiro ou leve, de onde as partículas subatômicas]. SACRIFÍCIOS: Em grego Thysia <2378> em que a oferenda era uma vítima que devia ser morta, como indica o verbo Thyö que indica oferecer sacrifícios, primariamente do fumo de incenso [thumos], obtido através de ser queimado, como eram as vítimas dos sacrifícios cruentos. Os incruentos eram pão, azeite, vinho e incenso. Os pães da preposição e o incenso tinham seus altares próprios. Os sacrifícios cruentos, tinham estas ações em comum: 1-Apresentação da vítima. 2- Imposição de mãos sobre a mesma. 3-Degolamento da vítima. 4-Aspersão do altar com o sangue [unicamente pelos sacerdotes] (verdadeira função sacerdotal, na qual consistia a essência do sacrifício). 5- Queima da vítima.  O número 4 era  a raiz e princípio do sacrifício, segundo a tradição judaica; pois a vida da carne está no sangue e eu mesmo vo-lo tenho dado sobre o altar para fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da vida (Lv 17. 11). Tudo isto serve para entender passagens de João e Paulo que são comentários teológicos de Cristo, como Sacerdote e vítima, assim como os correspondentes nesta carta aos Hebreus. As categorias do sacrifício cruento eram três: 1-Holocausto, queima total exceto a pele e o músculo da cadeira. Era o sacrifício contínuo que devia ser feito duas vezes ao dia: de manhã e ao anoitecer. 2- Expiatórios, divididos em razão do pecado e da culpa. O primeiro orientado à absolvição do pecado (expiação) e o segundo à restituição do dano cometido (Satisfação) [ambos incluídos na cruz]. 3- Oferendas de paz [Shelamim], divididas em sacrifício de louvor, cumprimento de um voto e oferendas voluntárias. O sacrifício da cruz foi de expiação e logo se transformou em pacífico na Eucaristia, como sacrifício de Louvor.

COMPAIXÃO: Sendo capaz de compadecer-se [metriopathein<3356>=condolere] com os ignorantes [agnoosin<50>=qui ignorant] e os que erram [planömenois<4105>=qui errant] já que também ele está rodeado [perikeitai<4029>=circundatus] de fragilidade (2). Qui condolere possit his qui ignorant et errant quoniam et ipse circumdatus est infirmitate. COMPADECER-SE: Metriopathein<3356> é um apax de Hebreus traduzido por condolere em Latim, ou compadecer-se. Embora seja esta tradução imprópria, pois a compaixão não é externa como quem olha as doenças de um enfermo ou as necessidades de um mendigo, senão como quem as sofre juntamente com eles. Seria, pois, compartir ou melhor ter compreensão ou estar em simpatia com. IGNORANTES: Do verbo Agnoeö <50> que significa ser ignorante, desconhecer e daí, errar por ignorância. DESGARRADOS: Planömenoi <4105> os que cometem pecado por fragilidade, não por soberba. Parece que o autor tem em consideração o texto evangélico do pecado contra o Espírito Santo, que tem como raiz a soberba de não querer admitir outra causa fora da própria razão, que o iludiu a admitir como maldade, fatos que só procediam da bondade divina. De fato o texto está apontando a um Sumo-Sacerdote humano, tanto em suas debilidades, quanto em sua compreensão das fragilidades alheias. Ele vive no meio de todas elas e por isso sabe compreendê-las, senão justificá-las.

OBRIGAÇÃO: E por isso, deve [ofeilei<3784>=debet] como pelo povo, assim também por si mesmo oferecer [prosferein<4374>=offerre] por (os) pecados (3). Et propter eam debet quemadmodum et pro populo ita etiam pro semet ipso offerre pro peccatis. Continha a descrição do Sumo-Sacerdote hebraico do AT que era obrigado [Ofeilei] a oferecer sacrifícios [Prosferein] pelos pecados do povo como também pelos próprios. O verbo Ofeilö indica um dever moral muito mais do que uma necessidade física ou biológica. Já temos explicado no versículo anterior, o tipo de sacrifício que devia ser feito pelo pecado e a satisfação devida à culpa correspondente. O parágrafo atual indica a necessidade do sacrifício, pois o pecado é universal e a culpa é tão geral como o pecado do qual procede.

     VOCAÇÃO: E não para si mesmo alguém toma a honra, mas o chamado por(o) Deus como Aarão (4). nec quisquam sumit sibi honorem sed qui vocatur a Deo tamquam Aaron. Com a comparação do chamado de Aarão, segundo Êx 28, 1 e seguintes, de modo especial a lâmina de ouro gravada com o título Consagrado ao Senhor, como o primeiro Sumo-Sacerdote da estirpe sacerdotal, cuja roupagem e atributos são descritos em Êx cap 28-29, o autor diz que este monopólio é uma vocação do alto.

  O CASO DE CRISTO: Assim também o Cristo não glorificou [edoxasen<1392>=clarificavit] a si mesmo ao se tornar  Sumo-Sacerdote, mas aquele que lhe falou Filho meu és tu; Eu hoje te gerei (5). Assim como também em outro (lugar) diz: Tu, sacerdote para a eternidade, segundo a ordem de Melquisedeque (6). Sic et Christus non semet ipsum clarificavit ut pontifex fieret sed qui locutus est ad eum Filius meus es tu ego hodie genui te. GLORIFICOU: O verbo Doxazö <1391> é traduzido por honrar, magnificar, glorificar, exaltar, elogiar. É o verbo usado para dar graças ou glorificar a Deus após um fato milagroso (Mt 15, 31; Lc 2, 20) e Jesus com respeito a sua ressurreição como restituído de uma glória aparentemente escurecida na cruz (Jo 7, 39). Jesus mesmo diz de si que ele não se glorificava [não se exaltava] a si mesmo; mas era o Pai que tal o fazia (Jo 8, 54). Aqui a glória é o ofício e ministério de Sumo-Sacerdote, que era o máximo benefício e incumbência entre os judeus. Uma honra, mas também uma responsabilidade que não pode ter origem na própria iniciativa. A razão é que foi escolhido por Deus, como falou pelo profeta: Filho meu és tu; eu hoje te gerei (Sl 2, 7). Este texto foi anteriormente citado em 1, 5 para indicar a superioridade de Cristo sobre os anjos. Também o cita Paulo em seu discurso em Antioquia da Pisídia para provar a ressurreição de Jesus Cristo (At 13, 33). Desta vez é para provar o chamado de Cristo para o Sumo-Sacerdócio. Existem duas questões,  nestas citações: Primeira, que significado histórico-literal tem cada uma das citações e segundo: quando foram pronunciadas, ou melhor, quando na vida de Cristo essas qualidades tiveram confirmação. Vejamos por partes: A) Tu és meu Filho; eu hoje te gerei: O salmista fala do Messias como sendo um rei que no dia de sua coroação é declarado por Jahveh como seu Filho, a quem glorifica como rei de todas as nações. Mas como afirma o salmo 110, 4: O Senhor jurou e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, à maneira de Melquisedec, cuja citação em Hebreus traz em seguida. Esse rei messias é também sacerdote e não da ordem de Aarão, mas de Melquisedec, sem fim ou eterno, ou seja sem necessidade de ter descendência por ser eterna a sua própria vida. E Melquisedec tinha ambos os ministérios em sua pessoa de rei e sacerdote. A  comparação com Melquisedec é tomada pela epístola aos hebreus em 9 ocasiões diferentes na mesma carta. Dirá o autor que aparece sem pai nem mãe e sem antepassados, nem se conhece o nascimento nem a morte; a semelhança do Filho de Deus permanece sacerdote para sempre  (7, 3). B) Pelo que diz respeito a tu és meu Filho temos os dois textos do batismo (Mt 3, 17) e da transfiguração (Mt 17, 5). E sobre o sacerdócio de Jesus temos as suas palavras na última ceia: eis meu sangue, derramado em prol da multidão, para o perdão dos pecados (Mt 26, 28 e Lc 22, 20 e 1 Cor 11, 25).

 

 

EVANGELHO (Mc 10, 46-52)

CURA DO CEGO BARTIMEU

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

SIMBOLISMO DA CEGUEIRA: Do cego biológico podemos passar em todas as línguas ao cego espiritual que não vê ou não quer ver fatos, causas e razões, por outro lado tão óbvias, que resultam claras opções e argumentos [fundamentos] da verdade. Por isso o cego material é um símbolo do cego espiritual. Com referências aos cegos materiais, temos nos evangelhos 12 delas. Dois casos de cura em Marcos: o cego de Betsaida (8, 22-23) e o cego de Jericó que é nosso caso (10, 46-52). As outras referências estão repartidas nos outros evangelhos. Sobre os cegos de alma, temos nos evangelhos 6 lugares de referência. Nenhuma delas em Marcos, 3 em Mateus, 2 em Lucas e uma em João; esta última, como reflexão sobre a cura do cego da piscina de Betesda. Os cegos do evangelho são os fariseus (Mt 15, 14 e 23, 16-26 e Lucas 6, 39 e Jo 9, 39-41). O texto mais discutido é o de Lucas 4, 18. Os exegetas comentam que Lucas cita Is 61, 1. Mas neste texto de Isaías que começa com O espírito do Senhor está  sobre mim não aparece a cláusula “dar vista  aos cegos” (tyflois anablepsein) a não ser na tradução dos Setenta. Jerônimo, na sua tradução direta do texto hebraico do seu tempo, não traz essa cláusula, terminando com praedicarem captivis indulgentiam et clausis aperitionem (pregar aos cativos o perdão e aos encarcerados a liberdade). Pelo texto paralelo de Is 42, 1-7 vemos que o Senhor chamou o “servo (referindo-se ao povo de Israel) para o serviço da justiça, como luz das nações, a fim de abrir os olhos dos cegos, a fim de soltar do cárcere os presos e da prisão os que habitam nas trevas”. Evidentemente este texto fala em termos metafóricos. Em Is 29, 18 lemos: “Naquele dia os surdos ouvirão as palavras do livro, e os olhos dos cegos, livres da escuridão e das trevas, tornarão a ver” (as palavras). São cegueira e surdez metafóricas. O texto latino de Jerônimo e o texto grego dos Setenta avaliam esta  interpretação contrária a da bíblia de Jerusalém que traduz: “Os surdos ouvirão o que se lê e os olhos dos cegos, livres da escuridão e das trevas, tornarão a ver”. Esta  tradução poderia ser entendida em termos materiais de cura de doenças biológicas, o que não corresponderia à realidade. Um outro texto do cântico do servo é Isaías 42, 16. Nele temos uma alusão metafórica: “Guiarei os cegos por um caminho que não conhecem”. Metafórica e altamente idealizada é a passagem de Is 35, 5-6 em que se abrirão os olhos dos cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos. Um último texto também metafórico é o de Jeremias 31, 8, indicando a facilidade da volta por caminhos sempre perigosos: “Eis que os trarei da terra do Norte e os congregarei… e entre eles também os cegos e aleijados, as mulheres grávidas e as de parto, em grande congregação, voltarão para aqui”. De todos estes textos deduzimos que os cegos são dois tipos alegoricamente diferentes dos biológicos: o primeiro formado por aqueles que não podem ver a luz porque estão dentro de masmorras que não tem luz; e o segundo grupo é formado por cegos que estão no caminho errado. Em Jeremias, realmente são os cegos materiais, porém qualificados como deficientes que não serão impedidos de voltar para Jerusalém após o exílio.

CONCLUSÃO: em todos os textos estudados há uma base comum: a volta do exílio, o júbilo e alegria pela nova fase de Israel, que era como uma vitoriosa e nova realidade que apontava aos tempos messiânicos. Se os cegos dos textos eram metafóricos e o fato da volta totalmente real, já nos tempos messiânicos os cegos eram reais e a nova realidade metafórica e virtual: o reinado de Deus por meio de Jesus, o Cristo. Por isso os velhos textos têm uma válida interpretação como profecia messiânica, plenamente realizada em Jesus de Nazaré, como o Cristo, Messias ungido de Jahvé. A oração do cego Bartimeu, Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim, é conhecida como a oração do coração ou oração do nome de Jesus. Do Oriente passou ao Ocidente para ser repetida em forma de ladainha ao ritmo das batidas do coração. Nasce da confiança em Jesus e produz uma grande paz interior. Por isso, no fim trataremos da cegueira espiritual tão abundante no mundo moderno.

JERICÓ: E chegaram a Jericó. E estando ele saindo de Jericó junto com seus discípulos e numerosa multidão, um filho de Timeu, Bartimeu, o cego, estava sentado, ao lado do caminho, mendigando (46). Et veniunt Hierichum et proficiscente eo de Hiericho et discipulis eius et plurima multitudine filius Timei Bartimeus caecus sedebat iuxta viam mendicans.

JERICÓ: Era uma cidade do vale do rio Jordão na sua ribeira ocidental, a 8 Km da costa setentrional do Mar Morto e aproximadamente 27 km de Jerusalém. Jericó está situada na parte inferior da subida que conduz à montanhosa meseta de Judá. Era conhecida como a cidade das palmeiras (Dt 34, 3). A primeira menção nas Escrituras se encontra em relação ao acampamento dos israelitas em Sitim (Nm 22,1). No começo do reinado de Herodes, os romanos saquearam Jericó. Depois, Herodes a embelezou construindo um palácio de inverno e sobre a colina da cidade levantou uma cidade que chamou de Cipro. A cidade está a 240m sob o nível do mar Mediterrâneo, num clima tropical, onde crescem as palmeiras, o bálsamo, o ligustro e os sicômoros. A antiga Jericó estava perto de abundantes águas [na atualidade ‘Ain es-Sultã], a fonte que Eliseu sarou (2 Rs 2, 12-22). A Jericó moderna [Er-Riha] está a 1,5Km ao Sudeste da fonte. A parábola do bom samaritano está situada no caminho de Jerusalém a Jericó (Lc 10, 30). Zaqueu era o chefe dos publicanos da cidade Lc 19, 1-2). E agora temos a cura do cego Bartimeu. BARTIMEU: Era um cego, bem conhecido pela primeira comunidade cristã, transformado em seguidor de Jesus após a sua cura. Daí que seu nome fosse conhecido e apresentado como testemunha de um fato extraordinário para confusão dos que duvidavam de Jesus como eram as multidões que o acompanhavam. O nome significa filho de Timeu, um composto de aramaico e grego, pois bar significa filho, e Timeu,  do verbo grego timaö, significa distinguido, honrado, respeitado. A condição dos cegos na época era de mendigos, junto com os coxos ou aleijados. Além da extrema miséria em que viviam, eram considerados malditos de Deus por serem vistos como objeto da vingança divina pelo pecado de seus pais (cegos de nascimento) ou próprio (cegos quando adultos) (Jo 9, 2 e 34). Os cegos eram numerosos em Israel, por causa de duas doenças incuráveis na época: o tracoma, causado pela Clamydia trachomatis um bacilo transmitido em muitos casos por uma mosca abundante no norte da África, e o glaucoma, ou pressão alta no glóbulo ocular. Para o cego, não existia outra forma de vida senão pedir esmolas à beira dos caminhos ou à entrada do templo como no caso do cego de Jo 8, 59 e 9, 1.

A PETIÇÃO: E tendo ouvido que Jesus, o Nazareu [Nazöraios<3480>=Nazarenus] é, começou a gritar e dizer: O filho de Davi, Jesus, tem compaixão de mim (47). Qui cum audisset quia Iesus Nazarenus est coepit clamare et dicere Fili David Iesu miserere mei. Antes da petição, Bartimeu grita o motivo de sua fé: Filho de Davi! Era o aposto de Jesus (47). Sabia Bartimeu que o nome de Jesus a quem logo chamará rabboni (meu mestre), significava Deus cura? Esperava que o Messias, cujo título estava incluído em Filho de Davi, tivesse poderes de cura? Seus gritos e sua insistência nos indicam que sim. Provavelmente Bartimeu sabia da cura dos dois cegos em Betsaida, no norte de Galileia (Mt 9,27). Por isso ele pede a maior esmola em termos materiais e espirituais: ver. Esse ver que nos momentos de sua agonia final Goethe também almejava. Quando sua visão terminava e sua vida se extinguia, ele exclamou, segundo dizem: Luz, mais luz. Mas voltemos ao nosso cego. A fé que Jesus pedia era a fé em sua pessoa como enviado de Deus (Jo 6, 57), em sua missão como Messias, e um destes títulos, era Filho de Davi. Nos evangelhos temos este título como parte do messiado de Jesus. Já Mateus inicia o seu evangelho chamando a Jesus filho de Davi, filho de Abraão (1, 1). Hoje, nos deixam indiferentes as duas genealogias. Mas devido às calúnias dos fariseus que o delatavam como filho de um legionário romano, indiretamente são uma apologia, além de ser uma verdade teológica indiscutível. NAZARENO: Aqui o sobrenome é Nazöraios<3480>, que o latim traduz por Nazarenus, indicando lugar de origem: de Nazaré. E que, como é nome, portanto deveria ser traduzido por o Nazareno. Sai 15 vezes no NT. O outro termo Nazarënos <3479> é adjetivo e só sai em Marcos e Lucas, 4 vezes no total. A tradução seria Nazareno. Desta circunstância servem-se os críticos modernos para duvidar não só de que nascesse Jesus em Belém, mas de toda a história de sua infância tanto em Mateus como em Lucas. A resposta é Mt 2, 23: foi habitar numa cidade chamada Nazaré para que se cumprisse o que fora dito por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno <3480>[=Nazareus]. Lembra-me o fato a mim acontecido. Nascido numa pequena aldeia da Rioja [região da Espanha] morava em Bilbao, capital do norte. Durante o início da guerra civil, tive que morar na aldeia nativa; mas todos me chamavam o bilbaino, embora por nascimento eu era mureño, da aldeia onde então morava. FILHO DE DAVI: Sem dúvida, que era um título messiânico, como vemos claramente em Mt 12, 23 e 20, 31. A pergunta de Jesus aos fariseus: como é que os escribas afirmam que o Messias é filho de Davi (Mc 12, 35; Mt 22, 42 e Lc 20, 41), dá lugar à semelhante título. Através da profecia de Natã (2 Sm 7, 12-16), Israel espera um grande rei, descendente de Davi, poderoso e triunfador, que fará realidade as promessas de Deus de liberdade e salvação do seu povo. Jesus não quis utilizar este título, se conformando com o do Filho do Homem, que respondia à visão de Daniel (7, 13). A primeira vez que filho de Davi é usado é por dois cegos de Cafarnaum (Mt 9,27 ) devido aos milagres, o povo  comentava: Não será este o filho de Davi (= messias)? (Mt 12, 23). Será depois a vez da mulher sirio-fenícia que também clamará: “Tem compaixão de mim, Senhor, filho de Davi!” (Mt 15, 22). Como rei, não teria o Messias poderes curativos especiais; mas também se atribuíam ao Messias características proféticas (Is 42, 1-7), especialmente o de dar vista aos cegos, que já temos explicado anteriormente. Dai o grito de Bartimeu, completamente bíblico (Is 42, 1-7). O próprio Jesus ao dar a reposta a João sobre se era ele o que tinha que vir, responde: “Os cegos veem, os coxos andam” (Mt 11, 5). Estas últimas considerações nos levam a concordar com os cegos, de modo especial quando para a sua cura eles se dirigem a Jesus com um título messiânico, o mais comum: o de filho de Davi. Por isso, no momento em que Jesus entra em Jerusalém sobre um jumento, a multidão gritava: Hosana  ao filho de Davi! (Mt 21, 10).

POR FIM: E o repreendiam muitos para que calasse; mas ele muito mais gritava: Filho de Davi, tem compaixão de mim! (48). E parado de pé, Jesus disse: chamai-o; e chamaram o cego, dizendo-lhe: ânimo, levanta, te chama! (49). Et comminabantur illi multi ut taceret at ille multo magis clamabat Fili David miserere mei. Et stans Iesus praecepit illum vocari et vocant caecum dicentes ei animaequior esto surge vocat te. Os gritos do cego deviam ser tais que molestavam a multidão. Como não podia ver, é possível que começasse a gritar quando Jesus ainda se encontrava distante dele. E quando o Mestre parou, [o stas grego que é traduzido corretamente pelo stans latino, significando estando parado de pé], Jesus, próximo a ele e rodeado pela multidão, manda que se apresente. Os que lhe comunicam o pedido lhe dão ânimo, pois conheciam perfeitamente o poder do Mestre. O relato é vívido e detalhista como de quem recorda momentos pontuais de sua vida.

BARTIMEU SE LEVANTA: Ele, pois, jogando a capa, levantando-se veio até Jesus (50). Qui proiecto vestimento suo exiliens venit ad eum. A CAPA: Era o vestido externo que servia de cobertor durante a noite e como blusa de frio em tempos de baixas temperaturas. O detalhe é único em Marcos ao qual segue Lucas, mas sem as particularidades próprias de uma testemunha ocular. Esse detalhe indica a confiança e prontidão que Bartimeu tinha em ser curado por Jesus.

     MESTRE: E Jesus, tendo falado, disse-lhe: Que queres que te faça? E o cego lhe disse: Rabboni [rabboni<4462>=rabboni=mestre meu], que veja (51). Et respondens illi Iesus dixit quid vis tibi faciam caecus autem dixit ei rabboni ut videam. Para Mateus eram dois os cegos e sua cura foi feita com menos detalhes; também Lucas ignora pormenores que em Marcos parecem importantes. Um deles é o título Rabboni [Mestre meu] de origem aramaica, que é familiar, ao mesmo tempo em que respeitoso, e que unicamente vemos em Jo 20, 16 ser usada por Maria, a Madalena. Outros dizem que Rabboni é usado em termos mais formais e solenes que rabbi, e muitas vezes é usado dirigindo-se a Deus. Significa o mesmo que a expressão Kyrios em Mt 20, 23 e Lucas em 18, 41. É um reflexo da expressão de Tomás: Meu Senhor e meu Deus. QUE VEJA: Lucas usa o mesmo verbo para a cura: anablepö, propriamente recobrar a vista. Foi cego por causa de uma doença adulta? Na Koiné raramente se usam os verbos em sua forma simples e se preferem os prefixos que não atingem o significado primitivo. Mateus usa que se abram nossos olhos (20, 33). Podemos, pois, ficar com o significado que veja, [tradução  da Vulgata] embora a tradução preferida pelos evangélicos seja que torne a ver (RA). Mais uma vez a Vulgata resulta uma tradução literal, exata, quando tem sido tão denegrida em tempos modernos!

A FÉ: Jesus, pois, lhe disse: Vá, tua fé te salvou. E imediatamente viu e acompanhava a Jesus no caminho (52). Iesus autem ait illi vade fides tua te salvum fecit et confestim vidit et sequebatur eum in via. A FÉ: Desta vez Jesus não exige a fé como em outros milagres, porque a fé exigida não era sobre a possibilidade da cura, mas a fé na pessoa de Jesus, acreditando no poder deste último por ser o representante do Deus vivo, por ser o Messias. Aqui a fé precede o milagre não o acompanha. Antes de pedir a cura, Bartimeu acredita em Jesus como Messias e pede para si o que os profetas do Messias prometiam: a cura dos cegos. Por isso, Jesus pede unicamente que queres de mim (51), o que é confirmado pelos outros dois evangelistas. É essa fé que Pedro não perderá porque Jesus orou para ele (Lc 22, 32), a mesma fé no nome de Jesus, que revigorou os pés do tolhido (At 3, 16). O SEGUIA: Precisamente, o milagre confirma a fé do cego como sucede muitas vezes com os crentes e por isso ele segue Jesus, a quem chamou mestre e Senhor. Para seguir realmente a Jesus é preciso abrir os olhos e curar a cegueira espiritual que possuímos e dissipar as trevas que nos rodeiam. Chesterton dirá: “Um crente é um homem que admite um milagre se se vê obrigado pela evidência. Porém um não crente é alguém que nem aceita discutir porque lhe obriga a isso a doutrina que professa e à qual não pode contradizer”.

PISTAS: A fé do cego nos obriga a uma reflexão profunda neste mundo em que é mais fácil não querer ver que abrir os olhos.

1) Um prelado da Igreja afirma que temos esquecido em favor da Segunda Tábua os mandatos da Primeira: o amor a Deus e a santificação das festas. Somente 20% dos católicos assistem à missa aos domingos. O agnosticismo moderno tem substituído a Providência divina pelo acaso de forças imprevisíveis, os valores e princípios éticos pelas oportunidades e proveitos individuais. A humanidade não tem um caminho de direção a seguir, mas está perdida em abrir passos às cotoveladas para ter maior espaço para os mais fortes.

2) Temos substituído a fé em Deus pela crença na ciência. O homem se considera dono da vida especialmente nos dois momentos mais frágeis da mesma: na hora de nascer e no decurso do seu declínio. Um terço da humanidade (infantes e idosos) está sendo descartada ou por ser indefesa ou por ser inútil. O valor de quem aparentemente não vale nada só pode ser cotizado como dignidade humana quando visto pela verdadeira família ou pela fé em Deus e Cristo.

3) A família é outro dos grandes valores que o mundo moderno além de não reconhecê-lo, o dificulta ainda mais. Desde que o prazer do sexo pode ser separado do princípio da fecundação, a família perdeu sua consideração como base da vida. O cardeal de Viena afirma que a postura de João Paulo II em favor da família tradicional é profética. Como toda profecia é palavra que denuncia um mal e prediz uma ruína e uma catástrofe que só a Providência Divina pode remediar e salvar.

4) O sentido do amor verdadeiro está se perdendo  com tantos programas para reforçar o prazer e evitar a responsabilidade. A responsabilidade se transforma assim em liberdade e esta em libertinagem.

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