Homilia de D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB – XXIII Domingo do Tempo Comum – Ano C

Carregar a cruz atrás do Cristo

Lc 14,25-33               

Caríssimos irmãos e irmãs,

Para este domingo a Liturgia da Palavra nos convida a tomar consciência do quanto é exigente seguir o Senhor.  O tema principal que sobressai nas leituras bíblicas é o da primazia do Criador em nossa vida. Já na primeira leitura, tirada do Livro da Sabedoria (cf. Sb 9,13-9), nos sugere indiretamente o motivo desta primazia absoluta de Deus: nele encontramos respostas para as perguntas do homem de todos os tempos que procura a verdade acerca da Divindade e de si mesmo. Sem Deus ficamos enfraquecidos e, sem a oração, isto é, sem a união interior com Ele, nada podemos fazer, como disse claramente Jesus aos seus discípulos durante a Última Ceia (cf. Jo 15,5).

No trecho evangélico temos o caminho a ser percorrido por cada seguidor de Jesus. Ele próprio apresenta as condições necessárias aos seus discípulos: amá-lo mais do que qualquer outra pessoa e mais do que a própria vida; carregar a própria cruz e segui-lo, renunciando a tudo o que possui. É o que ele diz: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (v. 26). E continua: “Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (v. 27).

Para compreender estas palavras de Jesus é preciso lembrar que o Evangelista São Lucas escreveu o seu Evangelho num contexto de perseguições. Alguns cristãos preferiam morrer a renegar a sua fé. Outros esquivavam, procurando salvar os seus bens, a família e a própria vida. O Evangelista São Lucas quis, não tanto condenar estas fraquezas na fé, mas apresentar um encorajamento àqueles que se mantinham firmes na fé, até à morte. Eram esses, os mártires, os que seguem Jesus até no mistério da sua morte na cruz.

Para sermos discípulos de Jesus, nada podemos antepor ao nosso amor por Ele, devemos carregar também a nossa própria cruz e segui-lo. Jesus bem sabe qual é o caminho que o Pai lhe pede para percorrer: o caminho da cruz, do sacrifício de si mesmo pelo perdão dos nossos pecados. A obra de Jesus é precisamente uma obra de misericórdia, de perdão, de amor.

E este perdão universal e esta misericórdia passam através da cruz. Mas Jesus conta com os seus discípulos para que possam continuar a missão que o Pai lhe confiou.  E Ele dirá aos seus seguidores: “Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós… Àqueles que perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20,21.22). O discípulo de Jesus renuncia a todos os bens porque encontrou em Cristo o Bem maior e reconhece nos outros bens um valor menor, tais como, os vínculos familiares e as outras relações.

Lembremos que em todos os séculos o Senhor chamou homens e mulheres para que o seguissem.  Eles deixaram tudo e tornaram, no mundo, um sinal luminoso do amor de Deus.  Basta pensar em pessoas como São Lourenço, Santa Luzia, São Bento, São Francisco de Assis, Santa Clara, Santo Inácio de Loyola, Santa Teresa de Ávila e muitos outros. Todos eles souberam deixar tudo, para estar à disposição de todos.

Para explicar esta exigência, Jesus usa duas parábolas: a da torre para construir e a do rei que vai para a guerra. Esta segunda parábola diz: “Qual o rei que, ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar as condições de paz” (Lc 14,31-32). Trata-se de uma parábola, mas, na verdade, existe uma guerra mais profunda que todos nós devemos combater. É a decisão forte e corajosa de renunciar ao mal e às suas seduções e escolher o bem. Esta guerra deve ser contra o mal, contra o ódio, a violência, ao erro e ao pecado.

Apenas o amor de Deus nos torna livres e isto constitui o centro da mensagem que o Senhor nos quer comunicar no trecho evangélico, aparentemente tão severo deste domingo. Com a sua palavra Ele afirma que podemos contar com o seu amor, o amor de Deus feito homem. Reconhecer isto é a sabedoria da qual nos falou a primeira leitura.

Inspirados na Carta de São Paulo a Filêmon (cf. Fm 9-10.12-17), que a liturgia da Palavra nos faz ler na segunda leitura, que é a mais breve de todas as cartas de São Paulo. Endereçada a Filêmon, aparentemente um membro destacado da Igreja de Colossos, São Paulo trata da questão de Onésimo, escravo de Filêmon, que havia fugido da casa do seu senhor. Ao encontrar-se com Paulo, ligou-se a ele e, com este convívio, transmitiu-lhe a fé, fazendo-o cristão e, ao mesmo tempo, seu colaborador.

No entanto, a situação podia tornar-se delicada, pois, de acordo com o princípio legal, ao dar guarda a um escravo fugitivo, Paulo poderia ser cúmplice de uma grave infração ao direito privado. Enfim, Onésimo corria o risco de ser preso, devolvido ao seu senhor e severamente castigado. É neste contexto que Paulo resolve enviar Onésimo a Filêmon, levando consigo uma carta, onde explica a Filêmon a situação e intercede pelo escravo fugitivo, pedindo que o receba, já não como escravo, mas como um irmão em Cristo. E insinua que, sendo possível, lhe devolva Onésimo, já que ele vem sendo de grande utilidade para Paulo. É um significativo texto, carregado de sentimentos fraternos.

A nova fraternidade cristã supera a separação entre escravos e livres e insere na história um episódio de promoção da pessoa que levará à abolição da condição de escravo de Onésimo.  Desta experiência particular de São Paulo com Onésimo, entendemos o impulso da promoção humana dado pelo Cristianismo ao caminho da civilização, do perdão, do amor e da fraternidade entre as pessoas.

Para Paulo, o amor deverá ser a suprema e insubstituível norma que dirige e condiciona as palavras, os comportamentos, as decisões. Ora, o amor tem consequências bem práticas, que os membros da comunidade cristã não podem esquecer. Implica ver em cada homem um irmão, independentemente do seu estatuto social. Todos são “filhos de Deus” e irmãos em Cristo. A conversão ao amor exige o reconhecimento da igualdade fundamental de todos os homens.  A partir do amor, devemos descobrir que todos são filhos do mesmo Deus e irmãos em Cristo; a partir do amor, o escravo descobre a afirmação clara da sua dignidade de homem. É esta a questão fundamental que o texto nos apresenta.

E a Eucaristia que estamos a celebrar é o Sacramento do amor, que nos recorda o essencial: a caridade e o amor de Cristo que renova os homens e o mundo. Sentimos estas manifestações nas expressões de São Paulo na Carta a Filêmon. Nesta pequena carta sente-se de fato toda a mansidão e ao mesmo tempo o poder irresistível da caridade, que é a principal força propulsora para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e também da humanidade. Portanto, devemos sempre lembrar do mandamento antigo e sempre novo: “Amai-vos uns aos outros como o Cristo nos amou” (Jo 13,34). 

Peçamos a Maria que nos ensine a colocar em prática os ensinamentos de seu Filho Jesus, para que possamos segui-lo todos os dias e, iluminados pelo Espírito Santo, sejamos no mundo, seus discípulos e testemunhas do amor e da misericórdia de Deus.  Assim seja.

Anselmo Chagas de Paiva, OSB
Mosteiro de São Bento/RJ

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