Homilia de D. Anselmo Chagas de Paiva – VIII Domingo do Tempo Comum – Ano C

Caros irmãos e irmãs,

A página do Evangelho para este domingo nos apresenta uma série de ensinamentos provavelmente dirigidos por Jesus aos fariseus (cf. Mt 15,14), um grupo observante da lei de Moisés que se apresentava como guia do povo no caminho para a santidade. Eram eles assíduos no estudo das leis e procuravam observá-las em seus mínimos detalhes. Para eles o importante era o que estava escrito na Lei, mas careciam de amor para com os outros. Estes ensinamentos tornam-se válidos também para cada um de nós hoje.

Jesus começa dizendo: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?” (v. 39). Com isto, Jesus quer mostrar que o guia de uma comunidade não pode ser cego. Ele deverá ser iluminado pelo ensinamento de Jesus para que possa iluminar, também, o seu irmão. Nos primeiros séculos da Igreja os que recebiam o batismo eram chamados de iluminados, porque a luz de Cristo lhes tinha aberto os olhos. Os cristãos deveriam ser aqueles que enxergam bem, os que sabem escolher os valores certos da vida e que estão em condições de apontar o caminho seguro para quem ainda peregrina na escuridão. Jesus adverte os seus discípulos sobre um grave perigo: eles também correm o risco de perder a luz do Evangelho, de voltar novamente às trevas, quando deixam-se guiar pelos falsos testemunhos. Quando isto acontece, eles se tornam guias cegos, nos quais já não é possível confiar.

A cegueira da qual Jesus fala é aquela de quem ainda não descobriu suas próprias sombras, seus defeitos. Se estamos cegos, não reconhecemos as nossas próprias falhas e não buscamos corrigir o que está imperfeito em nós. A trave nos nossos olhos nos impede de enxergar as nossas fraquezas e limitações. Para tirá-la, nós precisamos pedir ao Espírito Santo que purifique os nossos pensamentos, sentimentos e atitudes. Caso contrário, Jesus nos lembra: poderemos cair no buraco e levar muitos conosco.

Nesta linha de intenções, a primeira leitura aponta um exercício e um critério que é norma de sabedoria para ajuizar uma pessoa: a palavra que sai de sua boca (cf. Eclo 27,5-8). Com isso, Jesus fala do aspecto interior da pessoa: “O homem bom, do bom tesouro que é seu coração, tira o bem; mas o homem mau, do seu mau tesouro, tira o mal, pois a boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45). Na Sagrada Escritura, o co- ração do homem é a própria fonte de sua personalidade e, por isso, já no Antigo Testamento vimos que o homem precisava trocar o seu coração de pedra por um coração de carne (cf. Ez 36,25s). No Novo Testamento Jesus sequencia os ensinamentos dos profetas e chama a atenção para o verdadeiro mal, proveniente do coração: “É do coração do homem que procedem maus desejos, homicídios, adultérios… são estas coisas que tornam o homem impuro” (Mt 15,19ss). Jesus, por várias vezes, lembra a exigência divina de generosidade interior: é preciso receber a palavra num coração bem disposto (cf. Lc 8,15), amar a Deus de todo o coração (cf. Mt 23,37), perdoar ao irmão do fundo do coração (cf. Mt 18,35). E é aos puros de coração que Jesus promete a visão de Deus (cf. Mt 5,8). E nós somos convidados a imitar o próprio Cristo que é “manso e humilde de coração” (Mt 11,29).

Neste sentido, numa linguagem bíblica, o coração é centro dos nossos pensamentos, desejos e sentimentos, é a fonte de nossas obras boas ou más e sede de nossas decisões. O que procede de nosso coração permite reconhecer como está nosso interior. Como centro de nossas decisões, o coração assemelha-se ao cofre forte de um tesouro. Os discípulos de Jesus devem acumular nesse cofre um tesouro salvífico que façam deles homens bons e os levem às boas obras. Este tesouro interno jorrará pelas suas palavras, como afirma Jesus: “A boca fala daquilo de que o coração está cheio” (v. 45). Sabemos que o discípulo de Jesus deve ser luz para os outros, por isso, o seu coração deve ser semelhante ao coração de Cristo. No texto evangélico Jesus usa uma frase forte, que deve encontrar eco também em cada um de nós: “Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (v. 42). O termo “hipócrita” não designa só o homem dissimulado, falso, cujos atos não correspondem ao seu pensamento e às suas palavras, mas equivale ao termo aramaico “hanefa” que, no Antigo Testamento, significa “perverso”, “ímpio”. São aqueles que estão sempre à procura de uma falha dos outros para condenar, mas não estão preocupados com os seus próprios erros e falhas. Hipócrita é aquele que continuamente acha motivo para falar mal dos outros e nunca se pergunta se aquilo que de- testa dos outros, como a vaidade, o egoísmo, a avareza, a falsidade, não se encontra, em medida maior ou menor, nele mesmo.

Em outras passagens da Sagrada Escritura Jesus usa esta mesma expressão: “Quando, pois, deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louva- dos pelos homens. Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa” (Mt 6,2.5). Diante destas considerações podemos definir a hipocrisia como uma falsidade do coração, a ilusão de contentar a Deus com as aparências. O hipócrita é aquele que usa moeda falsa para Deus, alguém que o honra com os lábios enquanto seu coração está longe (cf. Mt 15,8).

Jesus hoje nos chama à purificação. Possamos organizar corajosa- mente nosso exame de consciência e deixar-nos julgar pelo evangelho. Talvez sejamos obrigados a admitir, por mais que nos desagrade, que so- mos todos hipócritas. Como todos os discursos de Cristo, também este sobre a hipocrisia pode encontrar ressonância em nós. Através do evangelho de hoje todos nós somos chamados a lançar um olhar para nós mesmos. Com frequência queremos tirar o cisco do olho alheio sem nos preocuparmos em remover a trave do nosso. Criticamos os outros sem olhar a nós mesmos.

O verdadeiro discípulo de Jesus é aquele que dá bons frutos (v.43- 45). Na primeira leitura ouvimos: “O fruto revela como foi cultivada a árvore; assim, a palavra mostra o coração do homem” (Eclo 27,7). É um sábio ensinamento para desvendar o que há no coração de cada pessoa. Cristo acrescenta ainda as obras, que também brotam do coração; e frisa que é pelos frutos conhecemos a árvore: “Não há árvore boa que dê maus frutos, nem árvore má que dê bons frutos. Cada árvore se conhece pelo seu fruto” (v.43). Nossa ação exterior e nossa intenção interior devem formar unidade.

Precisamos necessariamente produzir bons frutos, mas, para que isso se concretize, é necessário um processo prévio de interiorização, de contato com Deus pela oração, assimilando a sua Palavra num diálogo pessoal com Ele no silêncio de nosso coração. No final da oração do Pai Nosso, dizemos: “Livrai-nos do mal”, é deste mal que devemos pedir a Deus que nos liberte: do mal da hipocrisia, da falsidade, do erro, do peca- do. Que o Senhor nos conceda esta graça para que possamos apresentar ao Senhor frutos maduros e saborosos. Que Ele mesmo nos ajude a reagir abrindo o nosso coração ao bem e ao amor, para que a nossa vida interior nunca se assemelhe a árvore seca e sem vida. Que Ele também nos ajude a tirar a trave que carregamos em nossos olhos, a fim de ter- mos condições de ajudar os nossos irmãos e irmãs a tirarem o cisco de seus olhos. Assim seja.

Anselmo Chagas de Paiva, OSB

Mosteiro de São Bento/RJ

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