Homilia de D. Anselmo Chagas de Paiva – Vll Domingo do Tempo Comum – Ano C

VII DOMINGO DO TEMPO COMUM – C – O perdão e o amor aos inimigos

Lc 6,27-38

Caros irmãos e irmãs,

A primeira leitura da Liturgia da Palavra deste domingo nos prepara para melhor compreender o texto evangélico que a Igreja nos convida a refletir neste dia. Trata-se de um fragmento tirado do Primeiro Livro de Samuel (cf. 1Sm 26,2.7-9.12-13.22-23) onde relata uma grande lição de misericórdia. Davi e Saul eram inimigos e o ódio de Saul contra Davi era tão grande, que o levou a perseguir Davi no deserto de Zif, com uma tropa de três mil guerreiros. Aconteceu que, enquanto Saul dormia em plena noite, com sua lança fincada no chão, à sua cabeceira, Davi e seu companheiro de armas, Abisai, conseguiram penetrar no meio dos seus soldados, sem acordar ninguém. Abisai disse a Davi: “Deus entregou hoje em tuas mãos o teu inimigo. Vou cravá-lo em terra com uma lançada, e não será preciso repetir o golpe” (v. 8). Mas Davi não deixou, respondendo: “Não o mates! Pois quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor, e ficar impune?” (v. 8). Tomou apenas a lança e o cantil que lhe estava ao lado, retirou-se, e de amanhã, do alto de uma colina fronteira gritou para os homens de Saul, que alguém viesse buscar a lança do rei.

Através da atitude de Absai, pensamos na lógica humana, que pro- põe agredir o nosso inimigo, destruir quem praticou o mal. Também nos faz pensar na atitude de Davi, ou seja, o perdão incondicional ao adversário. O argumento usado por Davi é que não podemos estender a mão contra um “ungido do Senhor” (v. 8) e, pelo mesmo motivo, também contra os nossos inimigos, pois eles necessitam do nosso amor, para que possam se recuperar. Eles também são “ungidos do Senhor”, por serem criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). E, pelo batismo, podemos repetir com São Paulo: “Acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós?” (1Cor 3,16).

Esta cena do perdão de Davi a Saul nos remete à primeira palavra do Evangelho, onde Jesus diz a seus discípulos: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam” (cf. Lc 6,27-28). Encontramos nesta frase quatro imperativos: amai, fazei o bem, bendizei, rezai. É assim que o cristão deve se comportar diante de quem pratica o mal. É a novidade do espírito do Evangelho, em vivo contraste com o espírito do mundo. Amar os inimigos é um princípio da identidade cristã, uma norma da não violência, que consiste em não render-se frente ao mal, mas em responder com o bem, destruindo, dessa forma, a corrente da injustiça. Somos chamados a enfrentar a violência e o mal com as únicas armas do amor e da verdade. O amor ao inimigo constitui um autêntico dom de Deus.

Esta proposta de Cristo é realista, pois, não se pode superar a situação de uma sociedade violenta e injusta, a não ser contrapondo com o amor, a bondade e o incentivo ao perdão. O próprio Cristo deixou um exemplo para nós, pois ele mesmo fez o bem a quem o odiava, perdoou a quem o crucificava, não julgou e não condenou ninguém, lembrando que só Deus pode condenar (cf. Mt 7,1). Também muitos santos souberam imitar o Cristo neste exemplo, dentre tantos, podemos lembrar de Santo Estêvão, o primeiro que seguiu os passos de Jesus mediante o martírio. Ele morreu como Jesus, confiando a própria vida a Deus e perdoando os seus perseguidores. Enquanto o apedrejavam, disse: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito!” (At 7,59). São palavras semelhantes às pronunciadas por Cristo na cruz: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!” (Lc 23,46).

A atitude de Estêvão é um convite a cada um de nós, a também perdoar. A confiança em Deus nos fortalece nos momentos de provações. Por ocasião do seu martírio, Santo Estêvão, de joelhos, exclamou em voz alta: “Senhor, não lhes imputes por este pecado” (At 7,60). O perdão dilata o coração, gera partilha, proporciona serenidade e paz. A lógica do perdão e da misericórdia é sempre vencedora e abre horizontes de esperança. Mas o perdão cultiva-se com a oração, que nos permite manter o olhar fixo em Jesus. Santo Estêvão foi capaz de perdoar os seus assassinos porque, cheio do Espírito Santo, fitou o céu, conservando os olhos abertos para Deus (cf. At 7,55). Com a oração ele recebeu a força para padecer o martírio.

Tem verdadeiro amor em seu coração aquele que é capaz de amar seus inimigos, fazer o bem a quem o odeia, bendizer quem o amaldiçoa e rezar pelos caluniadores. Para assim proceder é preciso ser forte, estar imbuído de profundas convicções e, sobretudo, ser movido pelo Espírito Santo. Oferecer a outra face, dar a quem pede, romper a violência de quem nos tira o manto entregando-lhes também a nossa túnica, são atitudes de gente forte. Quem assim procede está rompendo um mecanismo de repetição que só pode ser rompido pela gratuidade.

A oração pelos inimigos é o ponto mais alto do amor, porque pressupõe um coração disposto a deixar-se purificar de qualquer forma de ódio. Ao rezarmos pelos nossos inimigos o nosso coração entra em sintonia com o coração de Deus que está nos céus, pois “ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos” (Mt 5,45). Quem acolhe o Senhor na sua vida e o ama com todo o coração é capaz de um novo início. Pode cumprir a vontade de Deus e realizar uma nova forma de existência, animada pelo amor até mesmo para com aqueles que nos odeiam. A grande lição de Jesus é a misericórdia. E o paradigma dessa misericórdia é o coração do próprio Deus: “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso” (v. 36). E as afirmações se vão sucedendo como numa verdadeira cascata de misericórdia: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e vos será dado” (v. 37-38).

Amar quem nos ama, elogia e prestigia, é fácil. Todo jogo dos interesses passa por este tipo de relação. Mas amar quem nos prejudica, quem nos amaldiçoa, quem não corresponde às nossas expectativas, é mais difícil e até mesmo impossível sem a graça de Deus. Às vezes nos fechamos ao amor gratuito, cujo modelo maior é Deus, de quem temos de aprender generosidade, compreensão, acolhida, aceitação e intimidade, alegria no partilhar, amor e perdão. As exigências de Jesus vão muito mais a fundo: ele exige um amor gratuito, baseado em uma justiça comutativa (v. 34). Devemos recordar sempre que o evangelho nos permite e nos obriga a condenar o pecado, mas não o pecador. Este é o amor, especialmente nas relações familiares. Não podemos esperar que seja sempre o outro a dar o primeiro passo. Amar os que nos amam e fazer bem aos que nos fazem o bem é natural a todos.

Os versículos seguintes mostram que a principal tarefa do cristão é “ser como Deus é”. Então Deus será eternamente fiel ao que ele tem operado de belo, de puro, de misericordioso na nossa vida: “…E não sereis julgados; … e não sereis condenados; … e sereis perdoados… Colocar-vos-ão no regaço medida boa, cheia, recalcada e transbordante”. A bondade de Deus não está apenas nele próprio. Ela transborda, ela age. Por isso o cristão deve fazer o bem. Uma das formas mais sutis de parecermos com Deus é a generosidade de “não julgar”. A tendência da criatura de julgar os outros é talvez uma tentativa de se autocompensar de suas frustrações e incompetências.

Que a Virgem de Nazaré interceda por nós, para que possamos colocar em prática os ensinamentos do Senhor e saibamos amar o nosso próximo como ele nos amou, e sermos misericordiosos como nosso Pai celestial é misericordioso (v. 36). E que o Senhor nos ensine a abrir o nosso coração ao perdão e nos faça amar uns aos outros e a acolher até mesmo os nossos inimigos como irmãos, filhos do mesmo Pai celeste. Assim seja.

Anselmo Chagas de Paiva, OSB

Mosteiro de São Bento/RJ

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